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domingo, 28 de fevereiro de 2016

Fundação e desenvolvimento da lógica ocidental (Introdução)





Aristóteles, "pai da lógica ocidental".

Por Anthony Kenny e Desidério Murcho
Adaptado por Artur Eduardo


Muitas das ciências para as quais Aristóteles contribuiu foram disciplinas que ele próprio fundou. Afirma-o explicitamente em apenas um caso: o da lógica. No fim de uma das suas obras de lógica, escreveu:
"No caso da retórica existiam muito escritos antigos para nos apoiarmos, mas no caso da lógica nada tínhamos absolutamente a referir até termos passado muito tempo em laboriosa investigação".
As principais investigações lógicas de Aristóteles incidiam sobre as relações entre as frases que fazem afirmações. Quais delas são consistentes ou inconsistentes com as outras? Quando temos uma ou mais afirmações verdadeiras, que outras verdades podemos inferir delas unicamente por meio do raciocínio? Estas questões são respondidas na sua obra Analíticos Posteriores.
Ao contrário de Platão, Aristóteles não toma como elementos básicos da estrutura lógica as frases simples compostas por substantivo e verbo, como "Teeteto está sentado". Está muito mais interessado em classificar frases que começam por "todos", "nenhum" e "alguns", e em avaliar as inferências entre elas. Consideremos as duas inferências seguintes:
1)
Todos os gregos são europeus.
Alguns gregos são do sexo masculino.
Logo, alguns europeus são do sexo masculino.
2)
Todas as vacas são mamíferos.
Alguns mamíferos são quadrúpedes.
Logo, todas as vacas são quadrúpedes.
As duas inferências têm muitas coisas em comum. São ambas inferências que retiram uma conclusão a partir de duas premissas. Em cada inferência há uma palavra-chave que surge no sujeito gramatical da conclusão e numa das premissas, e uma outra palavra-chave que surge no predicado gramatical da conclusão e na outra premissa. Aristóteles dedicou muita atenção às inferências que apresentam esta característica, hoje chamadas "silogismos", a partir da palavra grega que ele usou para as designar. Ao ramo da lógica que estuda a validade de inferências deste tipo, iniciado por Aristóteles, chamamos "silogística".

Uma inferência válida é uma inferência que nunca conduz de premissas verdadeiras a uma conclusão falsa. Das duas inferências apresentadas acima, a primeira é válida, e a segunda inválida. É verdade que, em ambos os casos, tanto as premissas como a conclusão são verdadeiras. Não podemos rejeitar a segunda inferência com base na falsidade das frases que a constituem. Mas podemos rejeitá-la com base no "portanto": a conclusão pode ser verdadeira, mas não se segue das premissas.Podemos esclarecer melhor este assunto se concebermos uma inferência paralela que, partindo de premissas verdadeiras, conduza a uma conclusão falsa. 

Por exemplo:
3)
Todas as baleias são mamíferos.
Alguns mamíferos são animais terrestres.
Logo, todas as baleias são animais terrestres.
Esta inferência tem a mesma forma que a inferência 2), como poderemos verificar se mostrarmos a sua estrutura por meio de letras esquemáticas:
4)
Todo o é B.
Algum B é C.
Logo, todo o A é C.
Uma vez que a inferência 3) conduz a uma falsa conclusão a partir de premissas verdadeiras, podemos ver que a forma do argumento 4) não é de confiança. Daí a não validade da inferência 2), não obstante a sua conclusão ser de facto verdadeira.

A lógica não teria conseguido avançar além dos seus primeiros passos sem as letras esquemáticas, e a sua utilização é hoje entendida como um dado adquirido; mas foi Aristóteles quem primeiro começou a utilizá-las, e a sua invenção foi tão importante para a lógica quanto a invenção da álgebra para a matemática.
Uma forma de definir a lógica é dizer que é uma disciplina que distingue entre as boas e as más inferências. Aristóteles estuda todas as formas possíveis de inferência silogística e estabelece um conjunto de princípios que permitem distinguir os bons silogismos dos maus. Começa por classificar individualmente as frases ou proposições das premissas. Aquelas que começam pela palavra "todos" são proposições universais; aquelas que começam com "alguns" são proposições particulares. 

Aquelas que contêm a palavra "não" são proposições negativas; as outras são afirmativas. Aristóteles serviu-se então destas classificações para estabelecer regras para avaliar as inferências. Por exemplo, para que um silogismo seja válido é necessário que pelo menos uma premissa seja afirmativa e que pelo menos uma seja universal; se ambas as premissas forem negativas, a conclusão tem de ser negativa. Na sua totalidade, as regras de Aristóteles bastam para validar os silogismos válidos e para eliminar os inválidos. São suficientes, por exemplo, para que aceitemos a inferência 1) e rejeitemos a inferência 2).

Aristóteles pensava que a sua silogística era suficiente para lidar com todas as inferências válidas possíveis. Estava enganado. De facto, o sistema, ainda que completo em si mesmo, corresponde apenas a uma fracção da lógica. E apresenta dois pontos fracos. Em primeiro lugar, só lida com as inferências que dependem de palavras como "todos" e "alguns", que se ligam a substantivos, mas não com as inferências que dependem de palavras como "se…, então ", que interligam as frases. Só alguns séculos mais tarde se pôde formalizar padrões de inferência como este: "Se não é de dia, é de noite; mas não é de dia; portanto é de noite". Em segundo lugar, mesmo no seu próprio campo de acção, a lógica de Aristóteles não é capaz de lidar com inferências nas quais palavras como "todos" e "alguns" (ou "cada um" e "nenhum") surjam não na posição do sujeito, mas algures no predicado gramatical. As regras de Aristóteles não nos permitem determinar, por exemplo, a validade de inferências que contenham premissas como "Todos os estudantes conhecem algumas datas" ou "Algumas pessoas detestam os polícias todos". Só 22 séculos após a morte de Aristóteles esta lacuna seria colmatada.

A lógica é utilizada em todas as diversas ciências que Aristóteles estudou; talvez não seja tanto uma ciência em si mesma, mas mais um instrumento ou ferramenta das ciências. Foi essa a ideia que os sucessores de Aristóteles retiraram das suas obras de lógica, denominadas "Organon" a partir da palavra grega para instrumento.

A obra Analíticos Anteriores mostra-nos de que modo a lógica funciona nas ciências. Quem estudou geometria euclidiana na escola recorda-se certamente das muitas verdades geométricas, ou teoremas, alcançadas por raciocínio dedutivo a partir de um pequeno conjunto de outras verdades chamadas "axiomas". Embora o próprio Euclides tivesse nascido numa altura tardia da vida de Aristóteles, este método axiomático era já familiar aos geómetras, e Aristóteles pensava que podia ser amplamente aplicado. A lógica forneceria as regras para a derivação de teoremas a partir de axiomas, e cada ciência teria o seu próprio conjunto especial de axiomas. As ciências poderiam ser ordenadas hierarquicamente, com as ciências inferiores tratando como axiomas proposições que poderiam ser teoremas de uma ciência superior.

Sêneca, um dos maiores oradores da Roma clássica. A Retórica é o campo no qual utiliza-se a chamada "lógica não-formal".

Se tomarmos o termo "ciência" numa acepção ampla, afirma Aristóteles, é possível distinguir três tipos de ciências: as produtivas, as práticas e as teóricas. As ciências produtivas incluem a engenharia e a arquitectura, e disciplinas como a retórica e a dramaturgia, cujos produtos são menos concretos. As ciências práticas são aquelas que guiam os comportamentos, destacando-se entre elas a política e a ética. As ciências teóricas são aquelas que não possuem um objectivo produtivo nem prático, mas que procuram a verdade pela verdade.
Por sua vez, a ciência teórica é tripartida. Aristóteles nomeia as suas três divisões: "física, matemática, teologia"; mas nesta classificação só a matemática é aquilo que parece ser. O termo "física" designa a filosofia natural ou o estudo da natureza (physis); inclui, além das disciplinas que hoje integraríamos no campo da física, a química, a biologia e a psicologia humana e animal. A "teologia" é, para Aristóteles, o estudo de entidades superiores e acima do ser humano, ou seja, os céus estrelados, bem como todas as divindades que poderão habitá-los. Aristóteles não se refere à "metafísica"; de facto, a palavra significa apenas "depois da física" e foi utilizada para referenciar as obras de Aristóteles catalogadas a seguir à sua Física. Mas muito daquilo que Aristóteles escreveu seria hoje naturalmente descrito como "metafísica"; e ele tinha de facto a sua própria designação para essa disciplina, como veremos mais à frente.

Argumentação x Demonstração (mini-curso de Lógica da Argumentação)

“Uma dedução é um argumento que, dadas certas coisas, algo além dessas coisas necessariamente se segue delas. É uma demonstração quando as premissas das quais a dedução parte são verdadeiras e primitivas, ou são tais que o nosso conhecimento delas teve originalmente origem em premissas que são primitivas e verdadeiras; e é uma dedução dialéctica se raciocina a partir de opiniões respeitáveis.”
Aristóteles
Afirma-se por vezes que a lógica estuda apenas demonstrações e que estas são “do domínio do apodíctico”, da verdade científica, ao passo que a argumentação “pertence ao domínio do verosímil”. Deste ponto de vista, a lógica seria limitada porque deixaria de fora a argumentação, detendo-se apenas na demonstração.
Esta ideia é falsa e resulta de várias confusões. A primeira confusão compreende-se melhor com uma analogia. Ninguém afirma que a física é limitada por não estudar os fenómenos físicos, detendo-se apenas em fórmulas matemáticas. A confusão é aqui evidente: as fórmulas matemáticas são uma parte importante das teorias que procuram explicar os fenómenos físicos; é claro que as fórmulas matemáticas usadas na física não são, elas mesmas, fenómenos físicos; mas são formas de codificar, explicar e compreender os fenómenos físicos. Pode-se falar dos limites da física se ela não tiver capacidade para codificar, explicar e compreender todos os fenómenos físicos; mas é disparatado defender que a física é limitada porque os fenómenos físicos não são fórmulas matemáticas.
O mesmo acontece na lógica. É evidente que as demonstrações não são argumentos. Mas as demonstrações são modelos teóricos de argumentos; são uma das formas que a lógica tem de estudar a argumentação. Atente-se no seguinte argumento:
Como seria possível que os cépticos tivessem razão? Isso é absurdo. Se eles tivessem razão, nada poderia ser conhecido com segurança — não poderíamos saber coisa alguma, a dúvida seria universal. Mas nesse caso, os próprios argumentos dos cépticos não poderiam ser aceites.
A lógica permite compreender melhor este argumento, exibindo a sua forma lógica; para isso, formula-se o argumento na sua forma canónica, elimina-se o ruído e explicitam-se as premissas implícitas:
Se os cépticos tivessem razão, nada poderia ser conhecido.
Se nada pudesse ser conhecido, os argumentos dos cépticos não poderiam ser aceites.
Se os argumentos dos cépticos não pudessem ser aceites, eles não teriam razão.
Logo, se os cépticos tivessem razão, não teriam razão.
A forma lógica deste argumento é a seguinte:
Se P, então Q.
Se Q, então R.
Se R, então não-P.
Logo, Se P, então não-P.
A lógica permite demonstrar que esta forma argumentativa é válida, isto é, que o argumento dado tem uma forma válida. Logo, argumentos e demonstrações não são domínios diferentes de estudo; as demonstrações são instrumentos para estudar a argumentação. Consequentemente, a ideia de que a lógica seria limitada porque se dedica exclusivamente a estudar a demonstração, deixando de fora a argumentação, é falsa. As demonstrações são instrumentos para compreender a argumentação, do mesmo modo que as fórmulas matemáticas usadas na física são instrumentos para compreender os fenómenos físicos.
Uma segunda confusão que está na origem desta ideia é a seguinte: Não é verdade que a demonstração “pertença ao domínio do apodíctico”, ao passo que a argumentação “pertence ao domínio do verosímil”. Que isto não pode ser verdade segue-se da confusão que já denunciámos — pois seria como dizer que as leis da física, que se exprimem em fórmulas matemáticas, pertencem ao “domínio do estático”, ao passo que os próprios fenómenos físicos pertencem ao “domínio do dinâmico”. Mas é conveniente eliminar outra confusão que está por detrás desta ideia.
Considere-se o seguinte argumento:
Se a eutanásia fosse permitida, abria-se a porta ao assassínio de estado. Por isso, nunca devemos permitir a eutanásia.
Segundo o partidário dos limites da lógica este seria um argumento e como tal do “domínio do verosímil”, ao passo que a demonstração seria do “domínio do apodíctico”. Mas isto é uma confusão, pois este argumento pode ser logicamente demonstrado. Comece-se por colocá-lo na sua forma canónica e explicitar a premissa implícita:
Se a eutanásia fosse permitida, abria-se a porta ao assassínio de estado.
Mas não é desejável abrir a porta ao assassínio de estado.
Logo, não devemos permitir a eutanásia.
De seguida, formalize-se parcialmente o argumento, para se poder captar a sua forma lógica:
Se P, então Q.
Não-Q.
Logo, não-P.
Pode-se agora demonstrar a validade desta forma lógica, usando a notação lógica habitual:
Prem1.P → Q
Prem2.¬Q
Sup3.P
1,34.Q1,3 E→
1,2,35.Q ∧ ¬Q2,4 I∧
1,26.¬P3,5 I¬
Na primeira coluna indicam-se as dependências lógicas do argumento; na segunda, numeram-se os seus passos; na terceira, argumenta-se; e na quarta justifica-se o argumento apelando para regras. O passo 1 é uma premissa e não carece de mais justificação; o passo 2 também; o passo três é uma premissa adicional, uma suposição (que corresponde ao que fazemos ao argumentar quando dizemos “Mas supõe que...”). Escolhemos estrategicamente P como suposição, pois é isso que nos permitirá concluir o que queremos. No passo 4 aplica-se a regra E→ (eliminação da condicional), tradicionalmente conhecida por modus ponens. Esta regra é aplicada aos passos 1 e 3; e por isso indicamos que o passo 4 depende das premissas 1 e 3 (sendo que 3 é uma suposição, que terá de ser eliminada). No passo 5 limitamo-nos a aplicar a regra I∧ (introdução da conjunção), que é muito intuitiva: se alguém afirma uma coisa e outra, pode-se concluir que essa pessoa afirma as duas coisas. A regra aplicou-se aos passos 2 e 4, permitindo juntar Q e ¬Q, de modo que o passo 5 depende agora das três premissas: 1, 2 e 3. Mas o passo 5 é uma contradição; e essa contradição resulta das premissas 1, 2 e 3. Assim, pode-se negar uma das premissas que deu origem à conclusão contraditória (como quando se diz: “se tivesses razão, Platão era um alfaiate, e por isso não tens razão”). Isso é o que se faz no passo 6: nega-se a suposição do qual o passo 5 dependia, aplicando a regra I¬ (introdução da negação, ou redução ao absurdo, como é tradicionalmente conhecida) aos passos 3 e 5; e o passo 6 já não depende da suposição do passo 3, porque foi precisamente essa suposição que se acabou de negar. E assim se conclui ¬P a partir das premissas P → Q e ¬Q.


Estátua de Immanuel Kant, um dos filósofos mais importantes da Modernidade. É o idealizador do conceito de "sintético a priori".
O que se fez foi caminhar muito devagar, passo por passo, aplicando regras transparentes que se podem justificar independentemente; fez-se isto para garantir que não nos enganamos ao argumentar. E o que se mostrou foi que o argumento original tem uma forma válida. Assim, uma demonstração tem uma relação muito precisa com o argumento que demonstra: é um modelo teórico que explica a conexão lógica existente entre as premissas do argumento dado e a sua conclusão.
Acresce que o argumento original seria, do ponto de vista do defensor da distinção entre demonstração e argumentação, indemonstrável, pois é um argumento do “domínio do verosímil” e não do “domínio do apodíctico”. Contudo, a lógica consegue demonstrar que um argumento do “domínio do verosímil” é válido. Defender que uma demonstração é diferente de um argumento porque a primeira, mas não a última, é do “domínio do apodíctico” só pode resultar de uma confusão entre 1 e 2:
  1. O tipo de conexão que existe entre as premissas de um argumento e a sua conclusão;
  2. O tipo de premissas e conclusões que um argumento tem.
Confundir 1 e 2 é não compreender a distinção entre verdade e validade, e por isso não saber que um argumento dedutivo válido pode ter premissas e conclusões meramente “verosímeis”, ao passo que um argumento não dedutivo pode ter premissas e conclusões “apodícticas”. O argumento apresentado atrás seria do domínio do “verosímil”, mas pode ser demonstrado pela lógica, pois trata-se de uma dedução válida. E há argumentos que são do “domínio do apodíctico” apesar de não serem dedutivamente válidos — o que significa que não podem ser demonstrados pela lógica. Considere-se o seguinte exemplo:
Até hoje, a Terra sempre completou uma revolução em torno do seu eixo em cada 24 horas.
Logo, dentro de 24 horas a Terra estará virada para o mesmo sítio que está agora.
A premissa e conclusão deste argumento são do “domínio do apodíctico”, dado que se tratam de verdades científicas. Todavia, o argumento não é dedutivamente válido; talvez seja válido (caso se acrescente algumas premissas suprimidas), mas a sua validade não é dedutiva, mas sim indutiva. Não se pode por isso demonstrar que é válido.
Em suma: a desejada distinção entre a demonstração, que seria do “domínio do apodíctico”, e a argumentação, que seria do “domínio do verosímil”, está errada. Por um lado, pode-se demonstrar a validade de argumentos “do domínio do verosímil”; por outro, há argumentos do “domínio do apodíctico” que não se pode demonstrar.
As confusões nas quais se baseia a pretensa distinção entre argumentação e demonstração podem ser esclarecidas com duas distinções correctas e “operativas”: a distinção entre a verdade das afirmações e a validade da argumentação, por um lado, e a distinção entre argumentos dedutivos e não dedutivos.
Como vimos, a validade é uma propriedade dos argumentos e não das premissas e conclusões dos argumentos. É por isso que há argumentos “apodícticos” com premissas “meramente verosímeis”: argumentos dedutivos válidos — demonstráveis — com premissas morais, estéticas, religiosas, etc., cuja verdade é disputável. E é também por isso que há argumentos “meramente verosímeis”, isto é, não-dedutivos, com premissas “apodícticas”, isto é, premissas que exprimem verdades lógicas, matemáticas, científicas, etc., que não são objecto de disputa.


A Retórica, sede da lógica não-formal, abre fronteiras além de seus consagrados campos de atuação, como a Religião, a Política e o Direito: esta é a insurgência retórica no jornalismo e na propaganda (mídia).

Quando Aristóteles refere a diferença entre o que ele chama “demonstração” e o que ele chama “dedução dialéctica” não se refere às demonstrações da lógica nem à ideia falsa de que as demonstrações lógicas se distinguem da argumentação. Aristóteles refere-se unicamente ao facto de as premissas de uma dedução serem ou não objecto de disputa. E como vimos, tanto se pode demonstrar logicamente um argumento cujas premissas são objecto de disputa, como há argumentos cujas premissas não são objecto de disputa e que não podem ser demonstrados pela lógica. O diagrama que representa os diferentes tipos de argumentos permite compreender melhor o que Aristóteles tem em mente:

Argumentos demonstrativos e dialécticos

Aristóteles classifica como argumentos demonstrativos aqueles argumentos dedutivos válidos cujas premissas são verdadeiras ou estão amplamente estabelecidas — o que hoje chamamos “argumentos sólidos”. E classifica como argumentos dialécticos os argumentos dedutivos válidos cujas premissas são disputáveis. Não se segue do que Aristóteles afirma que não se pode demonstrar logicamente um argumento dialéctico — o que seria falso, como vimos. O termo “demonstração” não é usado por Aristóteles para referir demonstrações lógicas ou derivações (que não existiam no seu tempo), mas antes argumentos dedutivos válidos com premissas verdadeiras (argumentos sólidos); consequentemente, a “argumentação dialéctica” não se opõe às demonstrações lógicas, mas antes aos argumentos cujas premissas são verdadeiras (isto é, aos argumentos sólidos).
Considere-se os argumentos apresentados sobre a eutanásia e os cépticos. Como é evidente, tais argumentos estão longe de ser aceitáveis, apesar de serem válidos e apesar de a sua validade ser demonstrável pela lógica formal. Os argumentos não são aceitáveis porque partem de premissas discutíveis; o que significa que é necessário argumentar a favor dessas premissas. Fazê-lo é repetir o processo normal de argumentação: é apresentar argumentos a favor das premissas — e uma vez mais esses argumentos serão ou dedutivos ou não dedutivos, válidos ou inválidos, e terão premissas discutíveis ou não. Mas nada depende do carácter “apodíctico” ou “meramente verosímil” da argumentação, nem da falsa oposição entre demonstração lógica e argumentação.
Perante um argumento, o trabalho crítico consiste em determinar a sua validade. Se for inválido, as suas premissas não nos dão qualquer razão para aceitar a sua conclusão, e nada mais há para discutir. Se for válido, é irracional aceitar as premissas e recusar a conclusão — mas é necessário discutir as premissas do argumento, o que só pode fazer-se recorrendo a novos argumentos. Esta é a dinâmica de toda a discussão rigorosa de qualquer assunto — matemática ou ética, música ou física, biologia ou religião (a própria lógica, como todas as disciplinas do conhecimento, está longe de estar acabada e abundam as discussões sobre diferentes teorias lógicas modernas, que resolvem de forma diferente os problemas da lógica). As distinções entre o “domínio do apodíctico” e o “domínio do verosímil”, e entre a argumentação e a demonstração lógica, em nada ajudam a compreender esta dinâmica, e são até um sério obstáculo a essa compreensão.

Exercícios

  1. Será que estamos obrigados a aceitar as conclusões dos argumentos válidos? Porquê?
  2. Que papel desempenha a distinção entre argumentação e demonstração na compreensão da argumentação? Porquê?
  3. Que papel desempenha a distinção entre o “domínio do verosímil” e o “domínio do apodíctico” na compreensão da argumentação? Porquê?
  4. Que aspectos temos de ter em conta quando discutimos um argumento? Porquê?
  5. Que tipos de validade existem? Dê exemplos de cada um dos tipos de validade.
  6. Que tipo ou tipos de argumentos são demonstráveis? Porquê?
  7. Poderá um argumento demonstrável ter premissas meramente “verosímeis”? Justifique.
  8. Poderá um argumento não demonstrável ter premissas “apodícticas”? Justifique.
  9. Explique claramente a distinção aristotélica entre argumentos dedutivos demonstráveis e argumentos dedutivos dialécticos, e apresente exemplos relevantes.

Retórica e lógica informal

Por “retórica” pode-se entender um conjunto de regras que têm por objectivo tornar mais clara a expressão dos argumentos; este sentido de “retórica” coincide com o que hoje se chama “lógica informal”. Mas por “retórica” pode entender-se outra coisa: a arte de persuadir independentemente da validade dos argumentos.
O papel da lógica informal pode ser ilustrado com o seguinte argumento:
1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos, temos de os ensinar a formular com clareza, precisão e criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos alunos.
C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
Do ponto de vista da lógica formal é indiferente apresentar o argumento por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por 2 em vez de 1. No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível se começarmos por 2. A lógica informal aconselha a começar por 2 (cf. Weston, Anthony, A Arte de Argumentar, Gradiva, Lisboa, 1996, págs. 21-23).
Contudo, a retórica aconselha a não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. Enquanto a lógica informal é uma actividade que tem como objectivo o argumento válido persuasivo, a retórica tem por objectivo único persuadir o interlocutor — e é mais fácil persuadir o interlocutor quando ele não consegue avaliar o argumento em causa por ficar confundido, uma vez que assim também não consegue refutá-lo. Enquanto a lógica informal tem por objectivo oferecer a possibilidade do pensamento crítico, a retórica tem por objectivo silenciar o pensamento crítico e persuadir a outra pessoa, independentemente da validade dos argumentos apresentados.
Nenhuma retórica pode transformar um argumento mau num bom argumento; o que a retórica pode fazer, no máximo, é disfarçá-lo; mas não ajuda a apresentar argumentos válidos nem a denunciar os inválidos. É a lógica informal que ajuda a fazer ambas as coisas.

A Lógica, em suas várias ramificações, é parte integrante da formação humana em todo o mundo, como no exemplo da imagem, onde um garoto brinca distinguindo e relacionando formas geométricas clássicas.

Tanto a lógica informal como a retórica têm em conta o auditório, mas de modos distintos. Do ponto de vista da retórica qualquer argumento que convença um auditório é bom, pois a persuasão é a única medida da argumentação. Mas é evidente que as piores falácias podem persuadir muitos auditórios, e nem por isso deixarão de ser falácias, ainda que sejam falácias persuasivas (aliás, por definição, uma falácia é um argumento inválido que é persuasivo porque parece válido, e portanto a retórica é incapaz de explicar o próprio conceito de falácia). Para a lógica informal, pelo contrário, o auditório é importante mas não determina só por si a validade ou invalidade da argumentação. O auditório é importante na lógica informal porque, por exemplo, ao argumentar a favor de uma dada ideia temos de escolher premissas que consideremos verdadeiras e que sejam aceitáveis para o nosso auditório; caso contrário estaremos a falar apenas para quem já aceita as nossas ideias. É por isso que o seguinte argumento é mau:
O aborto não deve ser permitido porque é o assassínio de inocentes.
Este argumento é mau porque quem não aceita a conclusão (“O aborto não deve ser permitido”) também não aceita a premissa (“O aborto é o assassínio de inocentes”). A argumentação criativa é a arte de mostrar que há argumentos válidos a favor de P que partem de premissas que quem é contra P está disposto a aceitar. E esta arte não se adquire com o estudo da retórica, mas sim com o estudo da lógica informal.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Quer fazer uma boa leitura? Leia o capítulo "O Maníaco", do livro "ORTODOXIA" de G. K. Chesterton


PESSOAS COMPLETAMENTE mundanas nunca entendem sequer
o mundo; elas confiam plenamente numas poucas máximas
cínicas não verdadeiras. Lembro-me de que, certa vez, fiz um
passeio com um editor de sucesso, e ele fez uma observação que
eu ouvira muitas vezes antes; é, na verdade, quase um lema do
mundo moderno. Todavia, eu ouvi essa máxima cínica mais uma
vez e não me contive: de repente vi que ela não dizia nada.
Referindo-se a alguém, disse o editor: "Aquele homem vai progredir;
ele acredita em si mesmo".

Lembro-me de que, quando levantei a cabeça para escutar,
meus olhos se fixaram num ônibus no qual estava escrito
"Hanwell". 1 (1 Nome de um asilo para loucos, como será verificado mais à frente). Disse-lhe eu então: "Quer saber onde ficam os homens
que acreditam em si mesmos? Eu sei. Sei de homens que
acreditam em si mesmos com uma confiança mais colossal do que
a de Napoleão ou César. Sei onde arde a estrela fixa da certeza e do

sucesso. Posso conduzi-lo aos tronos dos super-homens. Os
homens que realmente acreditam em si mesmos estão todos em
asilos de lunáticos". Ele disse calmamente que, no fim das contas,
havia um bom número de homens que acreditavam em si mesmos
e que não eram lunáticos internados em asilos. "Sim, certamente",
retruquei, "e você mais do que ninguém deve conhecê-los. Aquele
poeta bêbado de quem você não quis aceitar uma lamentável
tragédia, ele acreditava em si mesmo. Aquele velho ministro com
um poema épico de quem você se escondia num quarto dos fundos,
ele acreditava em si mesmo. Se você consultasse sua experiência
profissional em vez de sua horrível filosofia individualista, saberia
que acreditar em si mesmo é uma das marcas mais comuns de um
patife. Atores que não sabem representar acreditam em si mesmos;
e os devedores que não vão pagar. Seria muito mais verdadeiro
dizer que um homem certamente fracassará por acreditar em si
mesmo. Total autoconfiança não é simplesmente um pecado; total
autoconfiança é uma fraqueza. Acreditar absolutamente em si
mesmo é uma crença tão histérica e supersticiosa como acreditar
em Joanna Southcote: 2 (2 Ela (1750-1814) se dizia virgem e grávida do novo Messias, e chegou a ter muitos seguidores)quem o faz traz o nome "Hanwell" escrito no rosto com a mesma clareza com que ele está escrito naquele
ônibus".


Joanna Southcote.

A tudo isso meu amigo editor deu esta profunda e eficaz
resposta: "Bem, se um homem não acredita em si mesmo, em que
vai acreditar?" Depois de uma longa pausa eu respondi: "Vou para
casa escrever um livro em resposta a essa pergunta". Este é o livro
que escrevi para responder-lhe. Mas acho que este livro bem pode começar onde começou a
nossa discussão — na vizinhança de um manicômio. Os modernos
mestres da ciência muito se impressionam com a necessidade de
iniciar todas as investigações com um fato. Os antigos mestres da
religião igualmente se impressionavam com essa necessidade.
Começavam com o fato do pecado — fato tão prático como as
batatas. Pudesse ou não o homem ser lavado em águas milagrosas,
não pairaria nenhuma dúvida de que ele desejava lavar-se. Mas
certos líderes religiosos de Londres, não somente os materialistas,
começaram a negar nos dias de hoje não a altamente questionável
água, mas sim a inquestionável sujeira.

Certos novos teólogos questionam o pecado original, que
constitui a única parte da teologia cristã que pode realmente ser
provada. Alguns seguidores do rev. R. J. Campbell, em sua
espiritualidade quase exigente demais, admitem a ausência de
pecado em Deus, que não podem ver nem em sonhos. Mas eles
essencialmente negam o pecado humano, que eles podem ver na
rua. Os santos mais poderosos, assim como os mais poderosos
céticos, tomaram o mal positivo como ponto de partida de sua
argumentação. Se for verdade (como certamente é) que o homem
pode sentir uma felicidade extraordinária em esfolar um gato,
então o filósofo religioso só pode fazer uma dentre duas deduções.
Ou ele deve negar a existência de Deus, como fazem todos os ateus;
ou deve negar a presente união entre Deus e o homem, como
fazem todos os cristãos. Os novos teólogos parecem pensar que
uma solução altamente racionalista é negar o gato.



Nessa notável situação agora é simplesmente impossível
(alimentando alguma esperança de apelo universal) começar, como
faziam nossos pais, pelo fato do pecado. Esse fato, que para eles (e
para mim) está mais na cara do que nariz, é exatamente o que foi
diluído ou negado de modo especial. Mas embora os modernos
neguem a existência do pecado, eu acho que eles ainda não
negaram a existência do asilo para lunáticos. Todos concordamos
que há um colapso intelectual tão inconfundível como o desabamento
de uma casa. Os homens negam o inferno, mas não, por
enquanto, Hanwell. Para o objetivo do nosso argumento
fundamental, este último pode muito bem estar onde aquele estava.
Quero dizer que, assim como todos os nossos pensamentos e
teorias eram outrora julgados por sua tendência a levar ou não o
homem a perder sua alma, assim para o nosso objetivo presente,
todos os pensamentos e teorias podem ser julgados por sua
tendência a levar ou não o homem a perder a cabeça.

É verdade que alguns falam, de modo superficial e leviano, da
insanidade como sendo em si mesma atraente. Mas um momento
de reflexão mostrará que, se uma enfermidade é atraente, trata-se
em regra da enfermidade dos outros. Um cego pode ser um quadro
pitoresco; mas exige-se um par de olhos para ver o quadro. De
modo semelhante até mesmo a poesia mais louca da insanidade só
pode ser apreciada por quem é sensato. Para o insano a
insanidade é totalmente prosaica, porque é totalmente verdadeira.
Um homem que imagina ser uma galinha é para si mesmo tão
comum como uma galinha. Um homem que imagina ser um caco
de vidro é para si mesmo tão sem graça como um caco de vidro. A
homogeneidade de sua mente é o que o torna sem graça, e o que o
torna louco. E somente pelo fato de percebermos a ironia de sua
idéia que nós o achamos até engraçado; é somente pelo fato de ele
não ver a ironia de sua idéia que ele é internado em Hanwell, não
por outro motivo.



Em resumo, as esquisitices chocam apenas as pessoas
comuns. E por isso que as pessoas comuns têm uma vida muito
mais instigante; enquanto as pessoas esquisitas sempre estão se
queixando da chatice da vida. E por isso também que os novos
romances desaparecem tão rapidamente, ao passo que os velhos
contos de fada duram para sempre. Os velhos contos de fada
fazem do herói um ser humano normal; suas aventuras é que são
surpreendentes. Elas o surpreendem porque ele é normal. Mas no
romance psicológico moderno o herói é anormal; o centro não é
central. Consequentemente, as mais loucas aventuras não conseguem
afetá-lo de forma adequada, e o livro é monótono. Pode-se
criar uma história a partir de um herói entre dragões, mas não a
partir de um dragão entre dragões. O conto de fadas discute o que
o homem sensato fará num mundo de loucura. O romance realista
sóbrio de hoje discute o que um completo lunático fará num
mundo sem graça.

Comecemos, então, com um manicômio. Dessa estalagem
fantástica e perversa vamos partir para a nossa jornada intelectual.
Ora, se devemos examinar rapidamente a filosofia da sanidade, a
primeira coisa a fazer no caso é apagar um enorme erro comum.
Por toda parte existe a noção de que a imaginação, especialmente a
imaginação mística, é perigosa para o equilíbrio mental do homem.
Geralmente se diz que os poetas não são confiáveis do ponto de
vista psicológico, e geralmente faz-se uma vaga associação entre
cingir a cabeça com uma coroa de louros e fazer loucuras. Os fatos
e a história contradizem totalmente essa visão. A maioria dos
poetas realmente grandes não só foi de gente sensata, mas
também extremamente prática. Se Shakespeare um dia dominou
cavalos, isso se deu por ser ele o homem mais indicado para fazê-lo.


Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor, contemporâneo de Chesterton. Cantor, um dos mais famosos matemáticos de todos os tempos, é um exemplo perfeito de um "matemático que enlouqueceu". Morreu com o que chamaríamos hoje de transtorno bipolar em um hospital psiquiátrico, em 1918, na Alemanha. 

A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insanidade
é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem; mas os
jogadores de xadrez sim. Os matemáticos enlouquecem, e os caixas;
mas isso raramente acontece com artistas criadores. Como se verá,
não estou aqui, em nenhum sentido, atacando a lógica: só afirmo
que esse perigo está na lógica, não na imaginação. A paternidade
artística é tão sadia quanto a paternidade física. Além disso, vale a
pena observar que, quando um poeta foi realmente mórbido, o fato
geralmente se deu porque ele tinha um ponto fraco de
racionalidade no cérebro. Poe, por exemplo, foi realmente mórbido;
não porque era poético, mas porque era especialmente analítico.
Para ele até o jogo de xadrez era poético demais; ele não gostava de
xadrez porque era um jogo cheio de peões e castelos, como um
poema. Declaradamente, preferia as casas brancas do jogo de
damas, por se parecerem mais com os meros pontos pretos num
gráfico.

Talvez o caso mais convincente seja este: apenas um grande
poeta inglês enlouqueceu, Cowper. E ele foi definitivamente levado
à loucura pela lógica, pela repulsiva e estranha lógica da
predestinação. A poesia não foi seu mal, foi seu remédio. A poesia
preservou-lhe em parte a saúde. As vezes ele podia esquecer-se do
rubro e sequioso interno, para o qual seu hediondo determinismo o
arrastava em meio às águas caudalosas e as grandes e achatadas
flores aquáticas do rio Ouse. Ele foi condenado por João Calvino; e
quase foi salvo por John Gilpin.
Em todas as partes vemos que os homens não enlouquecem
sonhando. Os críticos são muito mais loucos que os poetas.
Homero c completo e bastante calmo; os críticos é que o rasgam
em trapos extravagantes. Shakespeare é exatamente Shakespeare;
apenas alguns de seus críticos é que descobriram que ele era
alguma outra pessoa. E embora João, o evangelista, tenha visto
monstros estranhos em sua visão, ele não viu nenhuma criatura
tão louca como um de seus comentadores. O fato geral é simples. A
poesia mantém a sanidade porque flutua facilmente num mar
infinito; a razão procura atravessar o mar infinito, e assim torná-lo
finito. O resultado é a exaustão mental, como a exaustão física do
sr. Holbein.

Aceitar tudo é um exercício, entender tudo é uma tensão. O
poeta apenas deseja a exaltação e a expansão, um mundo em que
ele possa se expandir. O poeta apenas pede para pôr a cabeça nos
céus. O lógico é que procura pôr os céus dentro de sua cabeça. E é
a cabeça que se estilhaça. É uma questão menor, mas não irrelevante, o fato de esse
contundente erro ser em geral sustentado por outro contundente
erro de citação. Todos ouvimos citação do famoso verso de Dryden:
"O grande gênio é da loucura aliado íntimo". 3  (3 "Great genius is to madness near allied"). Mas Dryden não disse que o grande gênio era aliado íntimo da loucura.
O próprio Dryden era um grande gênio e tinha uma noção mais exata. 
Seria difícil achar um homem mais romântico que ele, ou mais sensato.
O que Dryden disse foi o seguinte: "Grandes inteligências muitas
vezes são aliadas íntimas da loucura", o que é verdade. É a mera
presteza do intelecto que corre perigo de colapso.



Também se poderia lembrar de que tipo de homem Dryden
estava falando. Falava não de algum visionário lunático como
Vaughn ou George Herbert. Falava de um homem cínico do mundo,
um cético, um diplomata, um grande político pragmático. Um
homem assim é de fato um íntimo aliado da loucura. Os
incessantes cálculos de sua mente e da mente de outras pessoas
são uma ocupação perigosa. É sempre perigoso para a mente
investigar muito outra mente. Uma pessoa irreverente perguntoume
por que dizemos em inglês "as mad as a hatter" (louco como
um chapeleiro). Alguém ainda mais irreverente poderia responder
que um chapeleiro é louco porque ele tem de medir a cabeça
humana.

E se os grandes argumentadores muitas vezes são maníacos,
é igualmente verdade que os maníacos são em geral grandes
argumentadores. Quando me envolvi numa polêmica com o
CLARION sobre a questão do livre-arbítrio, aquele competente
escritor, o sr. R. B. Suthers, disse que o livre-arbítrio era uma
demência, porque implicava ações sem causa, e as ações de um
lunático seriam sem causa. Não me debruço aqui sobre o
desastroso lapso de lógica determinista. Obviamente, se alguma
ação, mesmo a de um lunático, pode ser sem causa, o
determinismo está acabado. Se a cadeia da causação pode ser
quebrada em benefício de um lunático, ela pode ser quebrada em
benefício de um homem comum. Mas meu propósito é sublinhar
algo mais prático. Seria natural, talvez, que um socialista marxista
moderno nada soubesse sobre o livre-arbítrio. Mas seria
certamente notável que um socialista marxista moderno nada
soubesse sobre lunáticos. O sr. Suthers evidentemente não sabe
nada sobre lunáticos. A última coisa que se pode dizer de um
lunático é que suas ações são sem causa. Se algum ato humano
qualquer pode grosso modo ser chamado de sem causa, trata-se de
um ato menor de um homem sensato: assobiar andando por aí,
golpear o capim com uma bengala, bater os calcanhares no chão
ou esfregar as mãos. O homem feliz é que faz coisas inúteis; o homem
doente não dispõe de força suficiente para ficar sem fazer
nada.

São exatamente essas ações despreocupadas e sem causa
que o louco jamais saberia entender; pois o louco (como o
determinista) em geral vê causa demais em tudo. O louco veria um
significado de conspiração nessas atividades vazias. Ele pensaria
que o golpe no capim era um ataque contra a propriedade privada.
Pensaria que as batidas dos calcanhares eram um sinal para um
cúmplice. Se o louco pudesse, por exemplo, ficar despreocupado,
ele ficaria são.



Todos os que tiveram a infelicidade de conversar com gente à
beira ou no meio da desordem mental sabem que a qualidade mais
sinistra dessa gente é uma clareza enorme de detalhes; a conexão
de uma coisa a outra num mapa mais elaborado que um labirinto.
Se você discutir com um louco, é extremamente provável que
leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente dele se move muito
mais rápido por não se atrapalhar com coisas que costumam
acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de
humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele
é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade. De fato, a
explicação comum para a insanidade nesse respeito é enganadora.
O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um
homem que perdeu tudo exceto a razão.

A explicação oferecida por um louco é sempre exaustiva e
muitas vezes, num sentido puramente racional, é satisfatória. Ou,
para falar com mais rigor, a explicação insana, se não for
conclusiva, é pelo menos incontestável. E o que se pode observar
especialmente nos dois ou três tipos mais comuns de loucura. Se
um homem disser, por exemplo, que os homens estão conspirando
contra ele, você não pode discutir esse ponto, a não ser dizendo
que todos os homens negam que são conspiradores; o que é
exatamente o que os conspiradores fariam. A explicação dele dá
conta dos fatos tanto quanto a sua. Ou se um homem disser que
ele é, de direito, o rei da Inglaterra, não é uma resposta completa
dizer que as autoridades existentes o chamam de louco; pois, se
ele fosse o rei da Inglaterra, essa poderia ser a maneira mais sábia
de agir para as autoridades existentes. Ou se um homem disser
que ele é Jesus Cristo, não é uma resposta dizer-lhe que o mundo
nega a sua divindade; pois o mundo negou a de Cristo.

Apesar de tudo, ele está errado. Mas se tentarmos descrever
seu erro em termos exatos, mão acharemos a tarefa tão fácil como
havíamos imaginado. Talvez a maneira de nos aproximarmos ao
máximo dessa descrição é dizer o seguinte: que a mente dele se
move num círculo perfeito, porém reduzido. Um círculo pequeno é
exatamente tão infinito quando um círculo grande; mas, embora
seja exatamente tão infinito, não é tão grande. Da mesma forma a
explicação insana é exatamente tão completa como a do sensato,
mas não tão abrangente. Uma bala é exatamente tão redonda
como o mundo, mas não é o mundo.


O "Dr. Frankenstein", da obra da autora Mary Shelley. O mais perfeito exemplo do quão maníaca a ciência moderna pode ser. 

Existe o que chamamos de universalidade reduzida; existe o
que chamamos de eternidade pequena e restrita; você pode vê-la
em muitas religiões modernas. Agora, falando como quem vê a
realidade inteiramente de fora e de modo empírico, podemos dizer
que a MARCA da loucura mais forte e inconfundível é a combinação
entre a completude lógica e a concentração espiritual. A teoria do
lunático explica muitas coisas, mas não as explica de um modo
amplo.

Quero dizer que se você ou eu estivesse lidando com uma
mente no processo de tornar-se mórbida, nossa principal
preocupação não deveria ser oferecer-lhe argumentos, mas sim ar;
convencê-la de que existe algo mais limpo e mais arejado fora do
sufoco de um único argumento. Suponhamos, por exemplo, que se
tratasse do primeiro caso que tomei como típico; suponhamos que
fosse o caso de um homem acusando a todos de conspiração
contra ele. Se pudéssemos expressar nossos mais profundos
sentimentos de protesto e apelo contra essa obsessão, suponho
que deveríamos dizer algo assim: "Certo, admito que você tem seus
argumentos e os sabe de cor, e que muitas coisas se encaixam em
outras coisas, como diz você. Admito que a sua explicação
esclarece muitos fatos; mas quantos outros ficam de fora! Não há
no mundo outras histórias além da sua? Todos os homens estão
ocupados com a sua ocupação?

"Vamos supor que os detalhes estejam corretos; talvez
quando o homem da rua causou-lhe a impressão de não ver você,
só o tenha feito por astúcia; talvez quando o policial lhe perguntou
seu nome, só o tenha feito porque já o sabia. Mas você se sentiria
muito mais feliz se simplesmente soubesse que essas pessoas não
lhe deram a menor atenção! Muito mais ampla seria a sua vida se
o seu eu pudesse tornar-se menor dentro dela; se você pudesse
realmente olhar para os outros homens com uma curiosidade e um
prazer comuns; se você pudesse vê-los caminhando tais quais eles
são em seu radiante egoísmo e viril indiferença! Você começaria a
interessar-se por eles porque eles não estão interessados em você.
Você fugiria desse pequeno e espalhafatoso teatro no qual o seu
pequeno enredo é continuamente representado, e você iria
perceber-se sob um céu mais livre, numa aia cheia de
maravilhosos estranhos." Ou suponhamos que se tratasse do
segundo caso de loucura, aquele do homem que reivindica a coroa,
o seu impulso seria responder: "Tudo bem! Talvez você saiba que é
o rei da Inglaterra; mas por que preocupar-se com isso? Faça um
magnífico esforço e você será um ser humano e desprezará todos
os reis da terra".


Inri Cristo: o falso-messias mais yuppie de nosso tempo. 

Ou poderia tratar-se do terceiro caso, o do louco que
chamava a si mesmo de Cristo. Se nós expressássemos o nosso
sentimento, deveríamos dizer: "Então você é o Criador e Redentor
do mundo: mas como deve ser pequeno esse seu mundo! Que céu
reduzido você deve habitar, com anjos do tamanho de borboletas!
Como deve ser triste ser Deus; e um Deus incompetente! Será que
de fato não existe nenhuma vida mais plena, nenhum amor mais
maravilhoso do que o seu? E será que é mesmo na sua pequena e
penosa compaixão que toda a humanidade deve depositar sua fé?
Muito mais feliz seria você, haveria muito mais de você se o
martelo de outro Deus pudesse destruir o seu pequeno cosmos,
esparramando as estrelas como lantejoulas, e deixando você no
espaço aberto, livre como os outros homens para olhar para cima e
também para baixo!".

E é preciso lembrar que a ciência mais genuinamente prática
adota essa visão do mal mental; ela não procura discutir com ele
como se fosse uma heresia, mas simplesmente quebrá-lo como se
fosse um encantamento. Nem a ciência moderna, nem a religião
antiga acreditam no pensamento completamente livre. A teologia
desaprova certos pensamentos chamando-os de blasfemos. A
ciência desaprova certos pensamentos chamando-os de mórbidos.
Por exemplo, algumas sociedades religiosas, mais ou menos, estimularam
os homens a não pensar em sexo. A nova sociedade
científica definitivamente estimula os homens a não pensar na
morte; trata-se de um fato, mas é considerado um fato mórbido. E
ao lidar com aqueles cuja morbidez tem um toque de mania, a
ciência moderna se preocupa muito menos com a lógica pura do
que um dervixe dançando.

Nesses casos não é suficiente que o pobre infeliz deseje a
verdade; ele precisa desejar a saúde. Nada pode salvá-lo a não ser
uma fome cega de normalidade, como a fome de uma fera. Um
homem não consegue sair do mal mental só por meio de seu
pensamento; pois é exatamente o órgão do pensamento que se
tornou doentio, ingovernável e, por assim dizer, independente. Ele
só pode ser salvo pela vontade ou a fé. No momento em que a mera
razão entra em movimento, ela se move no velho sulco circular; ele
dará voltas e mais voltas em seu círculo lógico, exatamente como
um homem num vagão de terceira classe do Inner Circle 4 (4 Inner Circle Line, também chamada de "linha virtual", porque não tem nenhuma estação
de uso exclusivo. A Circle Line foi construída para ligar duas outras linhas.ficará girando à toa nessa linha, a não ser que execute o voluntário,
vigoroso e místico ato de descer na Rua Gower.
A decisão nesse caso é tudo; há uma porta que precisa ser
fechada para sempre. Todos os remédios são remédios
desesperados. Todas as curas são curas milagrosas. Curar um
louco não é discutir com um filósofo; é expulsar um demônio. E
por mais sóbrio que seja o procedimento de médicos e psicólogos
neste assunto, a atitude deles é profundamente intolerante — tão
intolerante quanto a de Maria I, a sanguinária. A atitude deles é de
fato a seguinte: que o louco deve parar de pensar, se quiser
continuar a viver. O conselho deles é a amputação intelectual. Se a
sua CABEÇA o ofende, corte-a; pois é melhor, não só entrar no
reino do céu como uma criança, mas entrar como um imbecil, em
vez de, com todo o seu intelecto, ser lançado no inferno — ou no
sanatório Hanwell.



Assim é a experiência do louco; ele em geral é um argumentador, 
muitas vezes um argumentador bem-sucedido. Sem
dúvida ele poderia ser derrotado no mero raciocínio, e os
argumentos contra ele poderiam ser colocados de maneira lógica.
Mas podem ser colocados de maneira muito mais precisa em
termos mais gerais e até mesmo mais estéticos. O louco está na
limpa e bem iluminada prisão de uma idéia só: é afiado num só
doloroso ponto. Está desprovido da sadia hesitação e sadia
complexidade.

Agora, como expliquei na introdução, estabeleci apresentar
nestes primeiros capítulos não tanto um diagrama de uma
doutrina, mas alguns quadros de um ponto de vista. E descrevi
detalhadamente minha visão do maníaco por este motivo: que
exatamente como eu sou afetado pelo maníaco, também sou
afetado pela maioria dos pensadores modernos. Aquele
inconfundível estado de espírito, ou tom, que ouço provindo de
Hanwell hoje em dia, também o ouço provindo da metade das
cadeiras de ciência e cátedras de ensino da atualidade; e a maioria
dos doutores da loucura são doutores da loucura em mais de um
sentido. Todos apresentam exatamente aquela combinação que já
observamos: a combinação de um raciocínio expansivo e exaustivo
com um reduzido bom senso. São universais apenas no sentido de
que tomam uma explicação superficial e a levam muito longe.
Mas o padrão pode estender-se infinitamente e ainda ser um
padrão pequeno. Eles vêem um tabuleiro de xadrez como branco
sobre preto, e se o universo fosse pavimentado com ele, ainda seria
branco sobre preto. Como o lunático, eles não conseguem alterar
seu ponto de vista; não conseguem fazer um esforço mental e de
repente vê-lo como preto sobre branco.

Tome o primeiro e mais óbvio caso de materialismo. Como
uma explicação do mundo, o materialismo tem uma espécie de
simplicidade insana. Ele tem exatamente a qualidade do
argumento do louco; temos simultaneamente a sensação de que
ele cobre tudo e a sensação que deixa tudo de fora. Contemple
algum materialista capaz e sincero como, por exemplo, o sr.
McCabe, e você terá exatamente essa sensação única. Ele entende
tudo, e nada parece digno de entendimento. O cosmos dele é
completo em todos os rebites e engrenagens, mas mesmo assim
seu cosmos é menor que o nosso mundo. De certo modo o
esquema dele, como o lúcido esquema do louco, parece não ter
consciência das energias alheias e da grande indiferença da terra;
ele não pensa nas realidades da terra, nas pessoas em luta, ou nas
mães orgulhosas, ou no primeiro amor, ou no medo no mar. A
terra é muito grande, e o cosmos é muito pequeno. O cosmos é
praticamente o menor buraco em que um homem pode esconder a
cabeça.


A soberba e a arrogância são tipos de "loucura", em certo sentido. O efeito é o mesmo: desprezo pelo sentimento alheio. 

É preciso entender que não estou discutindo a relação desses
credos com a verdade; mas, no momento presente, apenas a sua
relação com a saúde. Mais adiante na discussão espero atacar a
questão da verdade objetiva. Aqui falo apenas de um fenômeno de
psicologia. Não tento neste momento provar a Haeckel que o
materialismo é falso, como também não tentei provar ao homem
que se julgava Cristo que ele padecia as conseqüência de um erro.
Aqui simplesmente comento o fato de os dois casos terem a mesma
espécie de completude e a mesma espécie de incompletude.
Pode-se explicar a detenção de um homem em Hanwell por
um público indiferente dizendo que é a calcificação de um deus do
qual o mundo não é digno. A explicação realmente explica. Da
mesma forma, pode-se explicar a ordem do universo dizendo que
todas as coisas, mesmo as almas dos homens, são folhas
desabrochando de modo inevitável numa árvore absolutamente
inconsciente — o destino cego da matéria. A explicação realmente
explica, embora não, naturalmente, de uma forma tão completa
como a do louco.

Mas o ponto principal aqui é que a mente humana normal
não se opõe às duas explicações, mas sente em relação a ambas a
mesma objeção. Sua formulação aproximada é que se o homem em
Hanwell for o Deus real, esse deus não é grande coisa. E, de modo
semelhante, se o cosmos do materialista for o cosmos real, esse
cosmos não é grande coisa. A realidade se encolheu. A divindade é
menos divina que muitos homens; e (segundo Haeckel) a vida no
seu todo é algo muito mais cinza, estreito e trivial do que muitos
de seus aspectos. As partes parecem maiores que o todo.
De fato devemos lembrar que, seja verdadeira ou não, a
filosofia materialista é com certeza mais limitante do que qualquer
religião. Num sentido, naturalmente, todas as idéias inteligentes
são estreitas. Não podem ser mais amplas do que elas mesmas.
Um cristão só é limitado no mesmo sentido em que um ateu é
limitado. Ele não pode pensar que o cristianismo é falso e
continuar sendo cristão; e o ateu não pode considerar que o
ateísmo é falso e continuar sendo ateu. Mas, na prática, há um
sentido muito especial em que o materialismo tem mais restrições
que o espiritualismo. O sr. McCabe acha que sou escravo porque
não me é permitido acreditar no determinismo. Eu acho que o sr.
McCabe é escravo porque não lhe é permitido acreditar em fadas.
Mas se examinarmos os dois vetos veremos que o dele é realmente
um veto mais puro que o meu. O cristão tem perfeita liberdade
para acreditar que existe uma considerável quantidade de ordem
estabelecida e desenvolvimento inevitável no universo. Mas ao
materialista não é permitido admitir em sua imaculada máquina a
menor mancha de espiritualismo ou milagre. Ao coitado do sr.
McCabe não é permitido reter nem sequer o menor diabrete, embora
este possa estar escondido em algum jardim.



Os cristãos admitem que o universo é complexo e até
misturado, exatamente da mesma forma que um homem sadio
sabe que é complexo. O homem sadio sabe que nele há um vestígio
da fera, um vestígio do demônio, um vestígio do santo, um vestígio
do cidadão. Mais que isso, o homem realmente sadio sabe que nele
há um vestígio do louco. Mas o mundo do materialista é totalmente
simples e sólido, exatamente como o louco tem plena certeza de
que ele é sadio. O materialista tem certeza de que a história tem
sido simples e unicamente uma cadeia de causação, exatamente
como a pessoa interessante mencionada acima tem plena certeza
de que é simples e unicamente uma galinha. Os materialistas e os
loucos nunca têm dúvidas.

As doutrinas espirituais na verdade não limitam a mente
como fazem as negações materialistas. Mesmo acreditando na
imortalidade, eu não preciso pensar nela. Mas se a desacredito,
nela não devo pensar. No primeiro caso. a estrada está aberta e
posso ir adiante até onde quiser; no segundo caso, a estrada está
fechada. Mas o argumento é ainda mais forte, e o paralelo com a
loucura é ainda mais estranho. Pois o nosso argumento contra a
teoria lógica e exaustiva do lunático foi que, certa ou errada, ela
aos poucos destruía sua humanidade.

Agora a acusação contra as principais deduções do materialista
é que, certas ou erradas, elas aos poucos destroem a sua
humanidade. Não estou me referindo apenas à bondade; estou me
referindo a esperança, coragem, poesia, iniciativa, tudo o que é
humano. Por exemplo, quando o materialismo leva os homens a
um fatalismo completo (como em geral acontece), é totalmente
inútil fingir que ele, nalgum sentido, é uma força libertadora. E
absurdo dizer que se está promovendo especialmente a liberdade
quando só se usa o livre-pensar para destruir o livre-arbítrio. Os
deterministas vieram para amarrar, não para soltar. Podem muito
bem chamar sua lei de "corrente" de causação. É a pior corrente
que já prendeu um ser humano.



Se você quiser, pode usar a linguagem da liberdade para falar
do ensinamento materialista, mas é óbvio que essa linguagem é
exatamente tão inaplicável a esse ensinamento como um todo
quanto o é para falar de um homem trancafiado num
hospício.Você pode dizer, se quiser, que o homem é livre para
considerar-se um ovo cozido. Mas com certeza um fato muito mais
sólido e importante é que, se ele for um ovo cozido, não está livre
para comer, beber, dormir, caminhar ou fumar um cigarro. De
modo semelhante você pode dizer, se quiser, que o corajoso
especulador determinista é livre para não acreditar na realidade da
vontade. Mas um fato muito mais sólido importante é que ele não
está livre para levantar da cama, xingar, agradecer, justificar,
instar, punir, resistir a tentações, incitar multidões, tomar
resoluções de Ano Novo, perdoar pecadores, censurar tiranos ou
até mesmo dizer "obrigado" pela mostarda.

Antes de passar para outro assunto, permito-me observar que
existe uma estranha falácia afirmando que o fatalismo materialista
de certo modo favorece a misericórdia, a abolição de castigos
cruéis ou de qualquer espécie. O chocante é que isso é o oposto da
verdade. É perfeitamente defensável dizer que a doutrina da
necessidade não estabelece diferença alguma; que ela deixa o
espancador espancar e o bom amigo aconselhar como antes. Mas é
óbvio que se ela tiver de interromper uma dessas duas atividades,
o aconselhamento é que é interrompido. O fato de que os pecados
são inevitáveis não impede o castigo; se impede alguma coisa
impede a persuasão.



É provável que o determinismo leve à crueldade como
certamente levará à covardia. O determinismo não é incompatível
com o tratamento cruel dispensado aos criminosos. É (talvez)
inconsistente com o tratamento generoso; com qualquer apelo a
seus melhores sentimentos ou qualquer encorajamento em sua
luta moral. O determinista não acredita em apelos à vontade, mas
acredita na mudança de ambiente. Ele não deve dizer ao pecador:
"Vá e não peque mais", porque o pecador não pode evitar o pecado.
Mas ele pode mergulhar o pecador em óleo fervente, pois esse óleo
é um ambiente. Portanto, considerado como uma figura, o
materialista tem o fantástico perfil da figura de um louco. Os dois
assumem uma posição simultaneamente incontestável e intolerável.
É óbvio que tudo isso não é verdade apenas em relação ao
materialista. O mesmo se aplica ao outro extremo da lógica
especulativa. Há um cético muito mais terrível do que aquele que
acredita que tudo começou na matéria. E possível identificar o
cético que acredita que tudo começou nele mesmo. Ele não duvida
da existência de anjos e demônios, mas da existência de homens e
vacas. Para ele, seus próprios amigos são uma mitologia criada por
ele mesmo. Ele criou seu próprio pai e sua própria mãe.

Essa fantasia horrível tem em si algo incontestavelmente
atrativo para o egoísmo um tanto místico de nossa época. O editor
que pensava que os homens progrediriam se acreditassem em si
mesmos, aqueles seguidores do super-homem que estão sempre
tentando encontrá-lo no espelho, aqueles escritores que falam em
registrar sua personalidade em vez de criar vida para o mundo,
apenas alguns centímetros separam toda essa gente desse terrível
vazio. Depois, quando este bondoso mundo que nos cerca tiver
sido denegrido como uma mentira; quando amigos desaparecerem
transformados em fantasmas, e os fundamentos do mundo
falharem; depois, quando o homem, não acreditando mais em
nada e em ninguém, estiver sozinho em seu pesadelo, então o
grande lema individualista será escrito sobre ele em vingadora
ironia. As estrelas serão apenas pontos na escuridão de seu
cérebro; o rosto de sua mãe será apenas o esboço de seu próprio
pincel insano nas paredes de sua cela. Mas sobre sua cela estará
escrito, com assustadora verdade: "Ele acredita em si mesmo".
Tudo o que nos interessa aqui, porém, é observar que esse
pensamento extremo totalmente egoísta exibe o mesmo paradoxo
que exibe outro extremo do materialismo. 



É igualmente completo em teoria e igualmente mutilado na prática. Em nome da
simplicidade, é mais fácil afirmar essa idéia dizendo que o homem
pode acreditar que está sempre num sonho. Ora, obviamente não
pode haver nenhuma prova positiva de que ele não está num
sonho, pela simples razão de que não se pode apresentar nenhuma
prova que não se pudesse igualmente apresentar num sonho. Mas
se o homem começasse a incendiar Londres e a dizer que a sua
governanta logo o acordaria para tomar o café da manhã, nós
deveríamos prendê-lo e colocá-lo com outros lógicos naquele lugar
ao qual aludimos várias vezes no decorrer deste capítulo. O
homem que não consegue acreditar nos seus sentidos, e o homem
que não consegue acreditar em nada além de seus sentidos, os
dois são insanos, porém, a insanidade deles não é provada por algum
erro na sua argumentação, mas pelo erro evidente de sua vida.
Os dois se trancaram em duas caixas, em cujo interior estão
pintados o sol e as estrelas; os dois estão incapacitados de sair,
um para entrar na saúde e felicidade do céu; o outro nem sequer
para entrar na saúde e felicidade da terra. A posição deles é
bastante razoável; mais que isso, num sentido é infinitamente
razoável, exatamente como uma moeda de dez centavos é
infinitamente circular. Mas existe isso que conhecemos como uma
infinidade mesquinha, uma eternidade vil e escrava.

E engraçado notar que muitos dentre os modernos, céticos ou
místicos, tomaram como seu distintivo um certo símbolo oriental,
que é exatamente o símbolo dessa nulidade extrema. Quando
querem representar a eternidade, eles a representam usando uma
serpente com seu rabo na boca. Há um chocante sarcasmo na
imagem dessa refeição nada agradável. A eternidade dos fatalistas
do materialismo, a eternidade dos pessimistas orientais, a
eternidade dos arrogantes teosofistas e cientistas mais altos de
hoje está. de fato, muito bem representada pela serpente comendo
o próprio rabo, um animal aviltado que destrói até a si mesmo.
Este capítulo é puramente prático e diz respeito àquilo que
constitui a marca e o elemento principal da insanidade; podemos
dizer, em resumo, que é a razão usada sem raízes, a razão no vazio.
O homem que começa a pensar sem os apropriados primeiros
princípios fica louco; começa a pensar do lado errado. Nas páginas
restantes deste livro devemos tentar descobrir qual é o lado certo.
Mas, se isso é o que leva os homens à loucura, podemos perguntar,
para concluir, o que é que os mantém sadios.

No final do livro espero dar uma resposta definitiva, que
alguns vão achar definitiva demais. Mas por enquanto é possível
da mesma maneira unicamente prática dar uma resposta geral
sobre o que na história da humanidade concreta mantém a
sanidade humana. Enquanto se tem um mistério se tem saúde;
quando se destrói o mistério se cria a morbidez. O homem comum
sempre foi sadio porque o homem comum sempre foi um místico.
Ele aceitou a penumbra. Ele sempre teve um pé na terra e outro
num país encantado. Ele sempre se manteve livre para duvidar de
seus deuses; mas, ao contrário do agnóstico de hoje, livre também
para acreditar neles. Ele sempre cuidou mais da verdade do que da
coerência. Se via duas verdades que pareciam contradizer-se, ele
tomava as duas juntamente com a contradição. Sua visão
espiritual é estereoscópica, como a visão física: ele vê duas
imagens simultâneas diferentes e, contudo, enxerga muito melhor
por isso mesmo.



Assim, ele sempre acreditou que existia isso que se chama de
destino, mas também isso que se chama de livre-arbítrio. Assim,
ele acreditava que as crianças eram de fato o reino do céu, mas,
apesar disso, deviam obedecer ao reino da terra. Ele admirava a
juventude por ela ser jovem e a velhice por não o ser. E exatamente
esse equilíbrio de aparentes contradições que tem sido a causa de
toda a vivacidade do homem sadio. Todo o segredo do misticismo é
este: que o homem pode compreender tudo com a ajuda daquilo
que não compreende. O lógico mórbido procura tornar tudo lúcido
e consegue tornar tudo misterioso. O místico permite que uma
coisa seja mística, e todo o resto se torna lúcido. O determinista
torna a teoria da causação totalmente clara, e depois descobre que
não pode dizer "por favor" à empregada. O cristão permite que o livre-arbítrio
continue sendo um mistério sagrado; mas, por causa disso, sua
relação com a empregada assume uma claridade cintilante e
cristalina. Ele coloca a semente do dogma numa escuridão central;
mas o dogma se ramifica em todas as direções com abundante
saúde natural. Sendo que tomamos o círculo como o símbolo da
razão e da loucura, podemos muito bem tomar a cruz como o
símbolo ao mesmo tempo do mistério e da saúde.

O budismo é centrípeto, mas o cristianismo é centrífugo: ele
se propaga. Pois o círculo é perfeito e infinito em sua natureza;
mas é fixo para sempre em seu tamanho; ele nunca pode ser maior
ou menor. Mas a cruz, embora tendo no seu centro uma colisão e
contradição, pode estender seus quatro braços eternamente sem
alterar sua forma. Por ter um paradoxo no seu centro ela pode
crescer sem mudar. O círculo retorna sobre si mesmo e está
encarcerado. A cruz abre seus braços aos quatro ventos; é o poste
de sinalização dos viajantes livres.



Somente os símbolos têm valor, embora obnubilado, quando
se fala dessa questão profunda. E outro símbolo da natureza física
expressa bastante bem o lugar real do misticismo perante a
humanidade. A única coisa criada para a qual não podemos olhar
é a única coisa em cuja luz olhamos para tudo. (Como o sol ao
meio-dia, o misticismo explica todas as outras coisas por meio da
luz ofuscante de sua vitoriosa invisibilidade.) O intelectualismo
independente é (no sentido exato da frase popular) só brilho de lua;
pois é luz sem calor, e é luz secundária, refletida por um mundo
morto. Mas os gregos estavam certos quando fizeram de Apolo o
deus tanto da imaginação quanto da sanidade; pois ele era ao
mesmo tempo o patrono da poesia e o patrono da cura.
De dogmas necessários e de uma crença especial falarei
adiante. Mas aquele transcendentalismo pelo qual todos os
homens vivem ocupa primeiramente a posição semelhante à do sol
no céu. Temos consciência dele como uma espécie de esplêndida
confusão; é algo brilhante e informe, ao mesmo tempo fulgor e
borrão. Mas o círculo da lua é tão claro e inconfundível, tão
recorrente e inevitável, como o círculo de Euclides sobre um
quadro-negro. Pois a lua é absolutamente razoável; e a lua é a mãe
dos lunáticos: ela deu a todos eles o seu nome.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.

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