Por Luciano Garrido (Psicólogo)
Adaptado por Artur Eduardo
Em recente vídeo publicado no Youtube, o bispo Rodovalho, líder da igreja evangélica Sara Nossa Terra, resolveu opinar sobre um assunto que ignora solenemente. Suas declarações, de tão confusas e contraditórias, fizeram o desfavor de tornar ainda mais obscuro o que já andava imerso num mar de incompreensão. Estamos falando do polêmico PDC 234/2011, aquele Projeto de Decreto Legislativo de autoria do deputado João Campos que visava sustar trechos abusivos de uma resolução editada pelo Conselho Federal de Psicologia.
Como se sabe, o PDC 234 granjeou péssima reputação junto à opinião pública no momento em que a nossa imprensa militante resolveu apelidá-lo de projeto da “cura gay”. Quem, diferentemente do bispo Rodovalho, se deu ao trabalho de ler o texto do documento, pôde verificar que nele não há qualquer menção à doença ou cura de homossexuais, e que, portanto, tudo não passou de uma grande armação para que o projeto fosse sumariamente rejeitado sem correr o risco de ser minimamente compreendido. O que faz o bispo Rodovalho diante desse golpe rasteiro da militância gay? De maneira inacreditável, o líder evangélico vem a público culpar o projeto por uma campanha difamatória da qual ele foi, para todos os efeitos, apenas a vítima. Rodovalho confessa candidamente que desconhece os méritos ou deméritos do projeto, mas isso não o impede de, mesmo assim, considerá-lo infeliz. Como se não bastasse o rótulo infame que lhe fora injustamente aplicado pela imprensa marrom, o pastor mergulha o projeto nas águas turvas de sua própria ignorância e o batiza com um rótulo não menos injurioso — “PL da intolerância”, disse Rodovalho, mandando às favas o Oitavo Mandamento.
Bispo Robson Rodovalho.
A inépcia do bispo para discorrer sobre o tema do homossexualismo é patente. Logo de saída, ele erra feio ao dizer que a homossexualidade é definida por “todos os psicólogos, todas as pesquisas, todas as universidades” (!!) como uma questão de escolha ou opção do indivíduo, quando na verdade a quase totalidade dos profissionais da saúde a entende como uma “orientação sexual”, ou seja, algo que decorre essencialmente de uma atração, desejo ou impulso sexual de caráter involuntário. É claro que sempre pode haver liberdade de escolha em relação ao ato sexual em si, na medida em que o indivíduo pode abster-se de praticá-lo se assim decidir; mas a homossexualidade tomada unicamente pelo seu aspecto comportamental não é a forma pela qual os estudiosos do comportamento humano em geral a concebem. Para estes, um homossexual será sempre um homossexual, ainda que se abstenha de relações sexuais.
Estou propenso a concordar com o bispo quando afirma que o homossexualismo não é uma doença, mas isso está longe de ser um consenso entre os profissionais da saúde — como ele tão convictamente afirmou. Entre os que acham que o homossexualismo deve ser encarado como um comportamento patológico e aqueles que o entendem como mais uma manifestação possível da sexualidade humana — algo normal, portanto — existem outros que consideram a tendência homossexual como sintoma de uma desordem no desenvolvimento psicossexual e afetivo do indivíduo. Ou seja, o comportamento em si mesmo não seria uma patologia (conceito que, aliás, é polissêmico), mas um indício de prováveis desajustes na formação da subjetividade. Mas, deixemos de lado as trapalhadas do bispo Rodovalho e aproveitemos a oportunidade para esclarecer alguns pontos polêmicos do projeto em discussão. Para quem não se recorda, um dos dispositivos que o PDC 234 pretendia sustar na resolução 01/99 do CFP era o parágrafo único do artigo 3º. Lá está dito que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Em primeiro lugar, temos aqui uma dificuldade de ordem semântica. O que CFP entende por tratamento, afinal? Tudo o que se faz em psicologia clínica deve ser chamado de tratamento? Se uma pessoa solicita ajuda a um psicólogo porque se considera muito tímida, por exemplo, o serviço prestado por esse psicólogo deve ser considerado tratamento? Sendo tratamento, isso implica em dizer que a timidez é uma doença? Pois bem. Antes de impedir o psicólogo de propor tratamento a um homossexual, o CFP precisa definir com um mínimo de clareza qual acepção se aplica ao termo utilizado no texto normativo. Em relação à palavra cura, é preciso lembrar que o código de ética da profissão já dá conta de que a nenhum psicólogo é permitido prometer cura ao cliente, independente da queixa que o encaminhou ao consultório. O sucesso do tratamento psicoterápico depende de inúmeros fatores, muitos dos quais não sujeitos ao controle do profissional, de modo que qualquer promessa de cura deve ser encarada como uma forma de charlatanismo. Se não se pode propor cura da homossexualidade (até porque não é uma doença), tampouco se pode fazê-lo em relação a qualquer outra queixa que se apresente ao psicólogo, por mais banal que pareça a primeira vista. Quem propõe cura é curandeiro. O psicólogo, como regra, costumar a pautar seu trabalho pela noção de bem-estar. Quanto ao artigo 4º da resolução, trata-se de uma injunção absolutamente despropositada. Se entender as práticas homoeróticas como subprodutos de uma desordem psíquica for reforçar “preconceitos sociais”, doravante os psicólogos se verão melindrados para realizar qualquer tipo de psicodiagnóstico, ou mesmo para traçar um simples perfil psicológico que descreva características pessoais que se julguem depreciativas ou desfavoráveis. Seguindo a risca a lógica defeituosa do CFP, chegamos à conclusão de que todo diagnóstico está passível de gerar suscetibilidades ou, sei lá, despertar preconceitos contra a pessoa do diagnosticado — o que não seria, de resto, privilégio de um grupo de indivíduos que sente atração pelo mesmo sexo. Que não se fale mais em depressão, esquizofrenia, ansiedade, anorexia, dislexia, obesidade, fobia, pânico, obsessão, etc., até que o Código Internacional de Doenças (CID) seja definitivamente descartado como um imenso catálogo de estigmas sociais. Qual portador de transtorno, distúrbio ou desordem psíquica merece ser objeto de “preconceito”? Quando se pauta o estudo das psicopatologias por critérios políticos, não há limites para reivindicações de ordem subjetiva. A continuar essa obsessão normativa do Conselho Federal de Psicologia, em breve ao psicólogo será reservado apenas o direito de permanecer calado, pois tudo o que disser poderá ser usado contra ele no tribunal das ideologias politicamente corretas. Ao invés de desencorajar os preconceitos sociais lembrando aos leigos que entre saúde e doença existe um continuum (Breslow, 1999) e que as psicopatologias, em maior ou menor grau, fazem parte da nossa vida cotidiana (Freud, 1901), o CFP prefere forjar novos tabus e reabilitar velhas mistificações, na contramão do debate científico. É de se lamentar...
Fonte: MsM
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