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quinta-feira, 28 de maio de 2015

Calvinismo x Arminianismo: crítica de Franklin Ferreira ao artigo "Em Defesa do Arminianismo" e a réplica de Zwinglio Rodrigues

OBS.: Os textos abaixo são, respectivamente, do Franklin Ferreira, que é Pastor, professor e autor (http://www.teologiabrasileira.com.br/), de perspectiva reformada, e  o outro de Zwinglio Rodrigues, do Instituto Jacob Armínio, de perspectiva arminianista. Não emitimos um parecer próprio nestes textos. Se e quando for oportuno, o faremos em post próprio. O objetivo aqui é a propagação da informação e a fomentação do debate saudável. 


Em linhas gerais, o texto “Em defesa do arminianismo” (publicado na revista Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68) é bom. O autor, o pastor assembleiano Silas Daniel, acerta ao distinguir entre o calvinismo (denominado no texto de “compatibilista”) e o hipercalvinismo (que, suponho, seja o que o autor chama de “calvinismo fatalista”). E ele também acerta ao tratar o primeiro como uma interpretação cristã legítima, e o segundo como um erro sério que precisa ser rejeitado. E sugere algumas boas razões para o ressurgimento da fé reformada no Brasil (prevalência do pelagianismo em muitos púlpitos, críticas caricaturais ao calvinismo e a superficialidade neopentecostal). Ao fim do artigo, o autor fala em tons fortes e vigorosos da graça salvífica oferecida pela fé em Cristo, de forma bíblica. Então, o tom irênico do autor é bom e saudável.

Na tradição batista onde fui criado (fundamentalista e pietista, com alguma abertura à teologia liberal), o calvinismo ainda é tolamente tratado por alguns como uma “heresia perniciosa” (para usar as palavras do autor), muitas vezes assim rotulado ao lado de G12, “guerra espiritual” e outras esquisitices presentes no cenário evangélico brasileiro. Então, o tom adotado pelo pastor Silas em seu ensaio é um avanço importante no debate. E deve-se afirmar claramente, junto com o autor: o arminianismo não é pelagianismo, apesar desta posição ter prevalecido e ainda ser a visão religiosa de muito pregadores e mestres evangélicos no Brasil, que têm como modelo Charles Finney; mas, dependendo de que autor se lê (já que uma das poucas confissões de fé arminianas representativas são os “Artigos da religião”, revisados por John Wesley), esta tradição pode ser considerada semipelagiana ou semiagostiniana (mencionados, mas não definidos no texto).

Posto isso, o texto tem vários e sérios problemas, no campo da teologia e da história do pensamento cristão. Sobre o uso da Escritura, os versículos bíblicos são tratados como textos-prova. Não há sugestão de exegese ou de estudo léxico das palavras-chave, ou mesmo referências ao lugar das passagens na teologia bíblica. Isso fica evidente, por exemplo, na interpretação do autor da expressão “aos que dantes conheceu” (Rm 8.29), reduzida a mera previsão geral divina (ao interpretar 1Pe 1.2). Também não são indicados comentários bíblicos para suplementar as pressuposições do autor. Simplesmente presume-se que os ensinos arminianos são auto-evidentes nos versículos bíblicos citados. Há muito tempo atrás fui arminiano, e usei muitos daqueles versículos que o autor citou para “provar” o arminianismo e atacar o calvinismo. Mas, para cada texto bíblico citado há uma interpretação, por assim dizer, “calvinista”, que é muito mais coerente e consistente com o texto bíblico em si, o livro onde este está inserido e o contexto global da Escritura – e o leitor pode ir aos comentários de Agostinho, Martinho Lutero e João Calvino, ou aos de D. A. Carson, Douglas Moo, Donald Guthrie, F. F. Bruce e John Murray, para conferir a exegese das passagens-chave desta controvérsia.

João Calvino (1509-1564).

Pelo menos, o autor reconhece as várias tensões (e, por que não, as contradições) presentes na teologia arminiana, como ao tratar da presciência divina e do alcance da expiação: em outras palavras, o problema posto é: se Deus já sabia quem receberia a Cristo, por que este precisaria morrer por todos? Ou quando trata do significado da palavra “mundo”, sem levar em conta o significado da propiciação realizada por Cristo (ao citar 1Jo 2.2 como texto-prova da expiação geral). E quando admite algum tipo de predestinação (“sim, ele predetermina muitas coisas, mas não tudo”) ao mesmo tempo que, ao pressupor que Deus previu antes de predestinar, não trata de uma pergunta crucial, isto é, quem criou o que Deus previu?

Também há vários problemas no campo da teologia histórica. Trato apenas dos principais. Diferente do que o autor afirma, quase todos os grandes teólogos medievais criam na predestinação, seguindo em maior ou menor grau o que Agostinho ensinou no século V: Próspero, Gottschalk, Anselmo, Bernardo, Bradwardine, Tomás de Kémpis e Tomás de Aquino (cf. S. Th: I, q. 23, a. 1, a. 2, a. 4, a. 7, a. 8; I-IIae, q. 117, a. 5; II-IIae, q. 174; III, q. 24, a. 1, a. 3). Os pré-reformadores Jan Hus e John Wycliffe também afirmaram o ensino da predestinação em moldes agostinianos. Um detalhe que chama a atenção é que ainda que Agostinho seja citado, sua compreensão sobre a predestinação e a graça não é oferecida no texto.

O mais surpreendente é quando o autor afirma que Lutero abrandou a posição afirmada em seu tratado “Da vontade cativa”, e que passou a crer na possibilidade de se cair da graça (lendo erroneamente os Artigos de Esmacalde III.42-45, que, na verdade, refutava distorções anabatistas). Ao tratar de uma mudança de ênfase na teologia de Lutero, ele cita Herman Bavinck como fonte, mas não mencionou que este autor também afirmou que Lutero “nunca reverteu sua posição sobre predestinação”, e que os “verdadeiros luteranos” rejeitaram o sinergismo de Filipe Melanchthon (“Teologia Sistemática”, v. 2, p. 364).

Obviamente, há diferenças significativas entre os teólogos cristãos, e mesmo entre teólogos da tradição reformada. Por isso, um bom ponto de partida para tratar de temas teológicos controversos é começar com o que afirmam as confissões de fé que resumem as posições das tradições professadas, e não com as posições de teólogos, por mais importantes que estes sejam (por exemplo, nem todos os teólogos reformados ficam satisfeitos com a afirmação da CFW VI.1, de que Deus determinou permitir o primeiro pecado, mas esta confissão, e não a opinião dos teólogos, representa a posição reformada/puritana).

Sobre a participação dos arminianos no Sínodo de Dort – que talvez seja o mais importante concílio protestante já ocorrido – é necessário deixar claro que estes não foram vítimas inocentes do poder do Estado ou dos calvinistas, como o autor parece opinar. Como John de Witt afirmou: “Os arminianos (...) utilizaram de toda engenhosidade para evitarem qualquer declaração [clara de seus ensinamentos] (...), exigiram que fosse seguida sua própria pauta de assuntos em lugar da do Sínodo, praticaram evasivas táticas de retardamento e obstruções (...) e rejeitaram a autoridade do Sínodo em julgá-los; isto a despeito do fato de ser legalmente um Sínodo da Igreja em que ocupavam cargos, à qual confessavam pertencer, e a cuja disciplina estavam obrigados a se submeter em virtude de suas ordenanças e votos!” (cf. O Sínodo de Dort”, em Jornal Os Puritanos [Ano 3 nº 2, Março/Abril 1995], p. 27-30) E, como o pastor Silas reconhece, “os seguidores de Arminius na Holanda acabaram, com o passar do tempo, se afastando progressivamente do pensamento original de seu mentor”, rejeitando doutrinas como o pecado original, a expiação substitutiva e penal e até mesmo a divindade de Cristo, tornando-se, como nota o autor corretamente, “liberais em teologia”.

Quando trata da controvérsia arminiana do século XVIII, o autor (apoiando-se em uma única fonte secundária) poderia ter colocado toda a polêmica em contexto, o que seria muito instrutivo para nós, hoje. Em meados de 1740, houve um confronto entre Wesley e George Whitefield; o primeiro supunha, erroneamente, que a doutrina da predestinação poderia conduzir ao antinominianismo. Mas a leitura dos escritos puritanos, por parte de Wesley, conduziu-o a uma reavaliação desta posição e, com isso, alcançou-se um acordo entre ambos os lados, o que permitiu uma cooperação na pregação do evangelho, já que nos temas centrais (pecado original, justificação pela fé e santificação) havia acordo. Mas a contenda reiniciou-se em meados de 1770, por causa não da doutrina da predestinação, mas do ensino da justificação – o suíço John Fletcher (Jean de la Fléchère), colega de John Wesley, começou a negar a doutrina da imputação da justiça de Cristo ao fiel. Em síntese, ele afirmou que a justificação requereria santificação pessoal e não a fé somente (cf. “Fourth Check to Antinomianism”). Nesta altura, Wesley vacilou na defesa desta doutrina importantíssima para a fé evangélica. O contundente texto de Augustus Toplady, “Arminianismo: o caminho para Roma”, foi escrito nesta época – e em resposta a uma distorção da doutrina bíblica da justificação pela graça, recebida mediante a fé somente, com todas as implicações doutrinais e devocionais daí decorrentes. Richard Watson, talvez o mais habilidoso teólogo metodista, escreveu no século XIX, sobre Fletcher: “Embora muito admirado entre os wesleyanos, suas doutrinas não são admitidas como norma” (cf. Iain H. Murray, “Wesley and Men Who Followed”). E, diferente da perspectiva do autor, de que “o arminianismo ergueu-se vitorioso” da controvérsia, os metodistas arminianos saíram da igreja episcopal, que, na época, ainda era majoritariamente calvinista, para fundar um dos ramos do metodismo, e do qual se originou os movimentos de santidade (o outro ramo, seguidor do calvinismo, era o metodismo galês, e se tornou presbiteriano, e não congregacional, como afirmou o autor).

O estudo da história do pensamento cristão é muito importante. Mas, no fim, o que irá decidir toda discussão no âmbito da fé é a Escritura, que é “o juiz supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o juiz supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura” (CFW I.10). Portanto, o que conta é o que a Escritura ensina. Que ela seja estudada por meio de “exegese, exegese e mais exegese”, sempre em dependência do Espírito Santo. Pois devemos nos apegar somente e fielmente à Palavra de Deus, revelada nas Escrituras somente.


Resposta de Zwinglio Rodrigues, do Instituto Jacob Armínio:

O escritor batista Franklin Ferreira postou alguns comentários em sua página do facebook fazendo referência ao texto Em Defesa do Arminianismo, publicado na Revista Obreiro Aprovado, ano 36, nº 68, escrito pelo também escritor, nesse caso assembleiano, Silas Daniel. Li o artigo de Silas Daniel e o achei muito bom. O articulista representou bem o arminianismo clássico. Não vou entrar no mérito da “disputa”, mas, digamos, em meu próprio nome, visto que sou um arminiano clássico exaurido por ler e ouvir tantas inverdades e meias verdades sobre o arminianismo clássico, depois dos comentários de Ferreira ao texto de Daniel, passo a escrever algumas linhas comentando o que disse Ferreira e oferecendo algumas respostas. Tratarei apenas sobre o que achar necessário para o momento. Esse será meu empreendimento aqui. Antes, devo informar que o texto seguinte é informal, ou seja, não tem pretensão alguma de ser acadêmico. Tanto é que não cito as fontes donde retirei alguns excertos. Caso seja solicitado a apresentar as fontes, os anos e as páginas, farei isso sem dificuldade alguma. Sigamos.
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Observo de antemão o caráter gentil das linhas escritas por Ferreira. Não detectei nenhum tom belicoso. Isso é bom, pois não podemos imitar, por exemplo, a disposição raivosa (“disposição raivosa” é um eufemismo) que o Sínodo de Dort dispensou ao ancião arminiano Van Oldenbarneveldt, crente, irmão de fé, que foi decapitado e teve seus bens confiscados. Discussões e debates entre crentes, irmãos de fé, devem sempre ocorrer no campo das ideias e nada mais. Não cabe a cristãos autênticos serem iracundos e ofensivos no trato com o outro por causa de pontos de vistas teológicos distintos e nem por qualquer outra razão (sei o que é agir assim e o que é ser vítima disso). Afinal de contas, um crente genuíno tem o Espírito Santo para guiá-lo por um caminho distante da contenda. Paulo disse que não convém ao servo do Senhor contender (2Tm 2:24). Quem dera teólogos de todos os tempos tivessem observado esta Escritura. Parabenizo a Ferreira pelo tom irênico (tomo por empréstimo esta palavra que ele usou referindo-se ao escrito de Daniel) de seus comentários.
Feito esse destaque importante, passo a comentar algumas colocações de Ferreira que penso estarem relacionadas ao modo como ele vê o arminianismo clássico.
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O autor comunga com Daniel que o arminianismo não é pelagianismo e isso me deixou deveras contente, pois é comum ler e ouvir acadêmicos calvinistas concluírem que o arminianismo clássico é pelagianismo. Depois, Ferreira argumenta que dependendo de qual autor se lê podemos nos deparar com um arminianismo que é semipelagianismo ou semiagostinianismo. Estou de acordo. A respeito daquelas duas últimas terminologias, para fins de debates, opto sempre por usar o semiagostinianismo. Explico: o que é denominado de semipelagianismo está relacionado a um meio-termo que surge da querela entre os sistemas pelagiano e agostiniano. Ora, o que emerge da disputa não provém de qualquer núcleo teológico relacionado a Pelágio e sim a Agostinho. Não se tratava de uma forma modificada do sistema teológico de Pelágio, pois a teologia pelagiana foi rejeitada peremptoriamente. Tratava-se de manifestações do núcleo teológico agostiniano, do qual alguns, além de contraporem-se às doutrinas pelagianas, não estavam dispostos a seguir o bispo de Hipona até as últimas consequências de sua teologia. Destacar isso é importante porque, como Jessy Hurlbut, outros historiadores dizem que o pensamento soteriológico agostininano foi o que sempre prevaleceu na história da igreja, o que é uma inverdade possível de ser provada tanto no tocante aos quatro primeiros séculos bem como no tempo posterior a Agostinho. Nem o agostiniano Próspero de Aquitânea subscreveu as doutrinas mais radicais de Agostinho.
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Ferreira crítica Daniel por apresentar textos-prova para suas afirmações e não oferecer nenhuma discussão léxical e/ou exegética. Não vou entrar no mérito da reprimenda. Mas, entendendo (acredito que Daniel também) a importância de uma abordagem exegética dos textos bíblicos, conforme destaca Ferreira. Por isso, desejo apresentar aqui duas referências bíblicas pinçadas do artigo de Daniel que atestam a doutrina da expiação ilimitada, uma doutrina cara ao arminianismo clássico.
Tais escrituras não serão dadas apenas como textos dos quais se presume a expiação ilimitada, mas sofrerão uma análise exegética e lexical. Exporei as coisas assim: 1. Apresentarei uma conclusão de Charles Spurgeon sobre o que fazem estudiosos calvinistas com o texto de 1Timóteo 2:4. Só escreverei a conclusão porque Spurgeon certamente fez a exegese da passagem e chegou a conclusão que qualquer exegeta fiel ao que está escrito chegaria. 2. Posteriormente, trabalharei a passagem de 1João 2:2. Aqui apresentarei uma exegese da referida escritura.
1. Spurgeon e 1Timóteo 2:4.
E então? Tentaremos colocar um outro sentido no texto do que já tem? Penso que não. Precisa-se, para a maioria de vocês, conhecer o método comum com qual os nossos amigos Calvinistas mais velhos lidaram com esse texto. ‘Todos os homens,’ dizem eles, -- ‘quer dizer, alguns homens’: como se o Espírito Santo não poderia ter falado ‘alguns homens’ se quisesse falar alguns homens. ‘Todos os homens,’ dizem eles; ‘quer dizer, alguns de todos os tipos de homens’: como se o Senhor não poderia ter falado ‘Todo tipo de homem’ se quisesse falar isto. O Espírito Santo através do apóstolo escreveu ‘todos os homens,’ e sem dúvida quer dizer todos os homens. Estava lendo agora mesmo uma exposição de um doutor muito apto o qual explica o texto de tal forma que muda o sentido; ele aplica dinamite gramatical no texto, e explode o texto expondo-o […] O meu amor pela consistência com as minhas próprias doutrinas não é de tal tamanho para me autorizar a alterar conscientemente um só texto da Escritura. Respeito grandemente a ortodoxia, mas a minha reverência para a inspiração é bem maior. Prefiro parecer cem vezes ser inconsistente comigo mesmo do que ser inconsistente com a palavra de Deus.
Spurgeon diz que calvinistas
• mudam o sentido da Escritura;
• aplicam dinamite gramatical no texto;
• explodem o texto expondo-o;
• alteram o texto em favor de suas próprias doutrinas;
• estimam mais a ortodoxia do que a inspiração bíblica;
• e são inconsistentes.
Com a palavra Ferreira para apresentar sua exegese de 1Timóteo 2:4.
2. Uma exegese de 1João 2:2.
Ainda no tocante a interpretação bíblica, propomos um olhar sobre o vocábulo grego holos nas passagens de 1João 5:19 e 2:2.
Holos, segundo James Strong, significa “’todo’ ou ‘tudo’, i.e., ‘completo’: em extensão ou quantidade [...] como advérbio: tudo, inteiramente.” Gingrich e Danker estão de acordo e Rienecker e Rogers idem. Passemos à leitura das referências bíblicas. Sabemos que somos de Deus e que o mundo todo jaz no maligno. (1Jo 5:19)
“Mundo todo”, nesta referência, em termos de quantidade, indica a totalidade das pessoas. Nenhum intérprete calvinista ousa impor (ou ousa?) ao texto uma espécie de categoria de pessoas, mas toma a referência como um todo inclusivo, pois o autor está a tratar disso. O estudioso calvinista sabe que o mundo, a humanidade inteira, rebelde, está nas garras do maligno. No entanto, ao ler 1João 2:2, a coisa muda de figura.
E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo todo.
“Mundo todo” aqui para intérpretes calvinistas significa “mundo dos eleitos”. Dessa forma, em um mesmo texto, sob a pena do mesmo autor, em um contexto imediatíssimo, esses intérpretes dão sentidos diferentes à mesma palavra (todo) e expressão (mundo todo). Estive em uma mesa de debate com o doutor em hermenêutica e interpretação bíblica, Augustus Nicodemus, e ele chamou a atenção para a necessidade de se entender uma palavra revestida de alguma obscuridade exatamente no contexto mais imediato possível. Ou seja, antes de ir a outros textos e autores é preciso averiguar se a palavra ou expressão ocorre no mesmo texto e autor estudado. Perfeito! Logo, encerra-se ser necessário usar do mesmo procedimento no tocante à palavra “todo” e a expressão “mundo todo” nas referências joaninas em foco. Portanto, o “mundo todo” em 5:19 que está em pecado é o “mundo todo” de 2:2 passível de receber os benefícios da expiação. A boa hermenêutica deve chegar a essa conclusão, pois estamos tratando de regras básicas. A análise gramatical, per se, resolve a questão. Dizendo isso demonstramos o alto valor que damos ao sentido gramatical.
Não sendo suficiente para alguns, o próximo passo hermenêutico é a análise contextual, e esta, prova não poder comportar outro significado que não seja entender “todo mundo” como a totalidade das pessoas. Ademais, João fala sobre “pelos nossos pecados”, referindo-se aos crentes, e “pelos do mundo inteiro” referindo-se aos descrentes. Duas categorias bem distinguidas.
Outro malabarismo interpretativo proposto por calvinistas chega ao ponto de concluir que quando João diz “pelos nossos” ele está se referindo aos judeus convertidos e quando diz “pelos do mundo inteiro” trata-se de uma indicação dos gentios convertidos. Disso supõe-se serem os interlocutores de João todos judeus. Ora, a primeira Epístola de João é um texto tardio escrito em cerca de 90 d.C. e as comunidades já a muito eram compostas de crentes judeus e gentios. Tomando por certo que as epístolas joaninas foram endereçadas às comunidades cristãs da Ásia Menor reforça-se ainda mais o caráter misto das igrejas. Portanto, o apelo calvinista ao contexto histórico também desconstrói a interpretação dada à palavra “todo” e à expressão “mundo todo” chegando ao sentido de “mundo dos eleitos”.
Os arminianos clássicos seguem a boa hermenêutica e contenta-se tranquilamente com a intenção autoral. A gramática, o contexto imediato e o contexto histórico observados seguidamente nos informa que “mundo todo” em 5:19 e 2:2 trata da totalidade das pessoas sem ocupar-se com eleitos e não eleitos. Em extensão, a expiação é em favor de todos.
Não duvido que possa existir uma exegese melhor. Espero que Ferreira apresente as interpretações calvinistas “mais coerentes e consistentes com o texto bíblico” (resgato uma fala de Ferreira).
Meu amigo Walson Sales, arminiano fervoroso, de cinco pontos, a um tempo atrás me passou estas considerações históricas:
O que duas coisas todos esses homens – João Calvino, Heinrich Bullinger, Thomas Cranmer, Richard Baxter, John Preston, John Bunyan, John Howe, Zacharias Ursinus, David Paraeus, Stephen Charnock, Eduard Polhill, Isaac Watts, Jonathan Eduards, David Brainard, Thomas Chalmers, Phillip Dod-dridge, Ralph Wardlaw, Charles Hodge, Robert Dabney, W.G.T Shedd, J. C. Ryle, A.H.Strong – tem em comum? Todos foram calvinistas, e todos não ensinaram expiação limitada. Tal alegação com frequência choca igualmente calvinistas e não-calvinistas.
O que duas coisas todos esses nomes tem em comum? John Davenant, Mattias Martinius, Samuel Ward, Thomas Goad, Joseph Hall, Ludwig Crocius, e Johann Heinrich Alsted? Todos foram calvinistas, e todos foram delegados em Dort que rejeitaram a expiação limitada.
O que duas coisas esses nomes tem em comum? Edmund Calamy, Henry Scudder, John Arrowsmith, Lazarus Seaman, Richard Vines, Stephen Marshall, e Robert Harris? Todos foram calvinistas e todos foram teólogos em Westminster que rejeitaram a expiação limitada. Todos os homens acima também afirmaram a forma de expiação universal (Capítulo 4 do livro WHOSOEVER WILL: A BIBLICAL-THEOLOGICAL CRITIQUE OF FIVE POINT CALVINISM do dr David L. Allen – The Atonement: Limited dor Universal?)
Graças a Deus pela expiação ilimitada!
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Ferreira levanta a seguinte questão sobre a doutrina da presciência como pensada pelos arminianos clássicos: “se Deus já sabia quem receberia a Cristo, por que este precisaria morrer por todos?” Tal questão soa no sense. A morte de Cristo no arminianismo clássico não é para aqueles que Deus sabia que se arrependeria, mas é para toda a humanidade. Tal sacrifício como pensado pelo arminianismo clássico revela, antes de mais nada, o amor de Deus por toda humanidade e por cada pessoa (Jo 3:16) e seu santo desejo de que todos se salvem (1Tm 2:4, 2:6; Tt 2:11; 2Pe 3:9). Creio que Ferreira tenha conhecimento da explicação arminiana para a questão que ele levanta. De todo modo, deixo a rápida e básica explicação acima.
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Noutro momento, o escritor sai em defesa do Sínodo de Dort apresentando um excerto de John de Witt. Leiamos.
Os arminianos (...) utilizaram de toda engenhosidade para evitarem qualquer declaração [clara de seus ensinamentos] (...), exigiram que fosse seguida sua própria pauta de assuntos em lugar da do Sínodo, praticaram evasivas táticas de retardamento e obstruções (...) e rejeitaram a autoridade do Sínodo em julgá-los; isto a despeito do fato de ser legalmente um Sínodo da Igreja em que ocupavam cargos, à qual confessavam pertencer, e a cuja disciplina estavam obrigados a se submeter em virtude de suas ordenanças e votos!
Não vejo nada que deponha contra os arminianos nesta declaração quando trazemos a baila outras informações sobre o Sínodo. Para ser o mais objetivo possível na tentativa de desacralizar o Sínodo e de absolver os arminianos, apresento os excertos a seguir.
Frederick Calder escreveu:
A condenação foi determinada antes do Sínodo Nacional [...] montado, não tanto para examinar as doutrinas dos arminianos com o objetivo de analisar se eles eram dignos de tolerância e indulgência, mas para denotar um certo ar de solenidade e justiça [...]. Contando com a presença de ministros estrangeiros, autoridades respeitáveis, buscavam legitimar uma sentença elaborada e acordada anteriormente entre aqueles que estiveram à frente dos trâmites para a instalação do Sínodo.
Consoante Calder, o Sínodo foi montado apenas por uma questão pró-forma e de sagacidade, pois o veredito já era previsto.
Justo L. Gonzalez explica em torno de quais questões girou o debate depois dos remonstrantes apresentarem um documento (Remonstrance) contendo suas crenças. Vejamos.
[...] a controvérsia ficou envolvida num conjunto de questões políticas e sociais. A maioria das províncias marítimas, e especialmente a burguesia, que era numerosa e poderosa naquelas províncias, tomaram a posição arminiana. As classes baixas rurais, bem como aqueles das ilhas que viviam da pesca, apoiaram o Calvinismo rígido de Gomarus, e foram acompanhadas nesta posição por diversos estrangeiros exilados para quem a pureza da fé era essencial. Assim como as províncias marítimas apoiaram João Barneveldt em sua oposição ao poder crescente de Maurício de Nassau, os arminianos contaram com o apoio de Barneveldt, enquanto Maurício era a favor dos Gomaristas. Quando Roterdã optou pela posição remonstratense, Amsterdã, que há muito era sua rival, assumiu a posição oposta. De qualquer forma, em 1618, Maurício de Nassau e seu partido tinham consolidado seu poder, e, portanto, quando o Sínodo de Dort foi convocado estava claro que ele condenaria a posição remonstratense.
Eram questões políticas e sociais deram o tom da controvérsia. Pelo menos é o que informa Gonzalez.
Ora, sabedores de todas as articulações políticas cheias de péssimas intenções, nada mais natural o comportamento dos arminianos criticado por Ferreira citando Witt. Caso eu estivesse no lugar deles faria a mesma coisa. Suponho que até Ferreira. Continuo apresentando Dort.
Gonzalez escreve:
Imediatamente depois do Sínodo de Dordrecht tomaram medidas contra os arminianos e seus partidários... Quase uma centena de ministros de convicções arminianas foram banidos e outros tantos foram privados dos púlpitos. Aos que insistiam em continuar pregando foi determinada a prisão perpétua. Os leigos que assistiam aos cultos arminianos corriam o perigo de ter que pagar pesadas multas. Para se assegurarem de que os ministros não ensinassem doutrinas arminianas, também foi exigidoa aceitarem formalmente as decisões de Dordrecht. Em alguns lugares se chegou a exigir dos tocadores de órgão uma decisão semelhante Conta-se que um deles comentou que não sabia como tocar no órgão os cânones de Dordrecht.
José C. Rodriguez anota:
Quando o Sínodo de Dort se reuniu em 1618, os remonstrantes esperavam ser reconhecidos como iguais e que o sínodo ocorresse com espírito de fraternidade, mas não foi assim. Imediatamente depois do Sínodo, começaram as represálias e perseguições dos remonstrantes. Um total de 200 ministros arminianos foram depostos de seus cargos; 80 foram exilados; quase 70 fizeram um acordo para deixarem seus ministérios e guardarem silêncio. Líderes políticos tiveram seus bens apreendido. Van Oldenbarnevedelt foi declarado culpado de traição e em 14 de maio foi decapitado. Grócio foi sentenciado a prisão perpétua, porém com a ajuda de sua esposa, que o escondeu em um baú grande, supostamente cheio de livros, pode escapar e fugir em 1621.
Segundo Laurence Vance, isso tudo aconteceu, pasme, sob o seguinte juramento:
Prometo diante de Deus, no qual creio e ao qual adoro, como estando presente neste lugar, e como sendo o Pesquisador de todos os corações, que durante o curso dos procedimentos deste Sínodo, que examinarei e julgarei, não apenas os cinco pontos, e todas as diferenças que deles resultam, mas também qualquer outra doutrina, eu não usarei nenhuma composição humana, mas somente a palavra de Deus, que é uma infalível regra de fé. E durante todas estas discussões, somente objetivarei a glória de Deus, a paz da Igreja, e especialmente a preservação da pureza da doutrina. Então me ajude, meu Salvador, Jesus Cristo! Eu lhe suplico assistir-me pelo seu Espírito Santo!
Calder informa-nos:
Os Estados da Holanda, por meio de seus deputados, prometeram, verbalmente, que nenhum dano físico deveria ser infringido a eles, visto que o Sínodo estava sendo montado para examinar os pontos em disputa [...]. Mas, eles violaram a sua palavra, como os príncipes católicos fizeram com John Huss. Pois, embora tivessem feito a promessa acima, não lhes permitiram sair de Dort, visitar suas casas, mesmo quando na ocorrência das aflições familiares mais urgentes, ou em caso de morte [...]; e, finalmente, foram banidos do país como criminosos.
Qual o valor da palavra de um Sínodo que como diz Ferreira “talvez seja o mais importante concílio protestante já ocorrido”?
Fechando esse momento descritivo do que andou acontecendo pelos lados de Dordrecht sob um juramento em nome da Trindade, transcrevo mais uma informação de Calder.
Na manhã seguinte, 13 de maio de 1619, o último ato dessa tragédia foi realizado com o assassinato da vítima inocente, para servir como o selo de sanção dos trabalhos do Sínodo. Trazido à presença de seus juízes, a sentença foi lida [...] que terminava assim: "John Oldenbarneveldt sairá para o local da execução, terá a cabeça cortada pela espada da justiça, e seus bens serão confiscados." Ele recebeu esta sentença de morte [...] com um semblante destemido, e disse: “Eu estava com boas esperanças de que vossas excelências [...] permitissem que meus bens ficassem para minha esposa e filhos.” Estas últimas palavras ele pronunciou com uma voz fraca e semblante abatido, mas sendo informado pelo presidente que ele deveria submeter-se a sua sentença, retomou a sua firmeza, e levantando-se da assento foi imediatamente conduzido através do grande salão para o cadafalso. A sala estava cheia de seus amigos e conhecidos. Ele não tomou conhecimento de nenhum deles quando passou, e continuou a dar-se com a mesma grandeza e serenidade em seu caminho para o cadafalso, apoiado em seu cajado, e apoiado por seu servo. Quando chegou lá, perguntou: "Será que não há almofada ou banquinho para que eu me ajoelhe?" e, em seguida, ajoelhando-se sobre as tábuas ásperas, ele orou por um tempo. Então, levantou-se e começou a preparar-se, dizendo, ao apontar para o carrasco: "Esse homem não precisa me tocar." Ajoelhando-se para receber o golpe fatal, ele se dirigiu ao povo, exclamando em voz alta. "Bons cidadãos, não acredito que morro como um traidor, mas, pelo contrário, como um verdadeiro patriota"; e, em seguida, ajoelhando-se, levantando as mãos para o céu, disse: "Cristo é o meu guia; Senhor, tem piedade de mim, Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito"; foi quando o carrasco deu um golpe só em sua cabeça. E assim caiu este ilustre estadista e cristão.
Isso foi Dort, consoante autores citados. Via de regra, ao falarem do Sínodo de Dort, os calvinistas não trazem a tona aqueles eventos. Ficam sempre no meio da estrada. Isso é Lamentável. Não sei o que escreveu Silas Daniel sobre Dort, mas se teceu críticas, fez muito bem. Se o desconsiderou como santo e temente a Deus, fez bem. Matthias Martinius, um dos delegados presentes, arrematou: “(havia) alguns divinos, alguns humanos, alguns diabólicos.”
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Ferreira destaca ter Silas Daniel reconhecido que seguidores de Armínio se afastaram progressivamente do pensamento original do teólogo holandês. Daneil mais uma vez acertou em cheio dando esse destaque em seu texto. Muitos calvinistas medem Armínio, os primeiros remonstrantes e muitos arminianos clássicos de hoje com a “régua” Phillip Limborch que se afastou de Armínio apresentando ensinos próximos ao semipelagianismo e amalgamados à religião natural do Iluminismo. Tenho tido sempre a impressão que fazem isso por desonestidade intelectual. Simon Episcopius, o principal líder dos remonstrantes, amigo de Armínio, manteve-se firme e apegado aos ensinos soteriológicos de mestre.
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Quando Ferreira levanta a negação da divindade de Cristo por parte de arminianos posteriores, estaria ele referindo-se à fórmula autotheos (Deus em si mesmo) Tanto Armínio como Episcopius defendiam esta fórmula do mesmo modo que os pais capadócios e o grande Atanásio, Patriarca de Alexandria. Armínio e Episcopius nunca negaram que o Filho fosse da mesma essência do Pai, mas defendia que o Pai é a fonte da divindade. Portanto, ao se referir à negação da divindade do Filho, caso esteja Ferreira fazendo menção à fórmula autotheos, não é procedente inferir desta fórmula como sendo uma negativa da deidade de Jesus Cristo.
Armínio disse:
“Essa pessoa é o Filho de Deus e o filho do homem, dotado de duas naturezas, a divina e a humana, inseparavelmente unidas, sem mistura ou confusão [...] os antigos denominaram, corretamente, esta união de hipostática.”
Armínio (Episcopius e remonstrantes também) cria na Trindade Ontológica
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Finalmente, Ferreira, encerrando seus comentários concernentes ao texto de Silas Daniel ressaltando a importância do estudo da história do pensamento cristão, certeza com a qual concordo. Depois ele argumenta que o supremo juiz para decidir toda discussão sobre doutrina é a Escritura. Concordo mais uma vez. Não há dúvidas de que o que conta é o ensino da Escritura. Sigo de perto a Armínio com sua sentença: “Deve prevalecer a palavra do homem sobre a Palavra de Deus? Deve estar ligada a consciência do homem cristão pela Palavra de Deus ou pela palavra do homem?” Por último, devo concordar com Ferreira mais uma vez quando ele diz ser necessário estudar as Escrituras “por meio de exegese, exegese e mais exegese”. Que os calvinistas primem por isso para não serem repreendidos com a dureza com a qual Spurgeon censurou um certo doutor calvinista que aplicava dinamite gramatical a 1 Timóteo 2:4.

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