As pessoas gostam de coisas estranhas.
Alguns meninos do interior do Brasil gostam de comer barro (de capitais
também); há mulheres que gostam de futebol e homens que gostam de novelas; há
pessoas que gostam de…. nada. Isso mesmo. De
certa forma, nossa cultura contemporânea é, em grande parte, fruto da
melancolia do fim da modernidade. Notável é que, quanto mais melancólicas, mais
algumas pessoas conseguem criar belas artes, cujo impacto cultural não pode ser
mensurado facilmente. Este impacto, contudo, uma vez fruto de um “velho-novo”
hábito artístico nas mentes (pós)modernas, torna-se simultaneamente causa e
consequência daquilo mesmo que o originou. No caso, refiro-me à melancolia
moderna. A expressão maior deste sentimento, muito presente nas vidas e obras
de artistas contemporâneos, é o famoso niilismo, o qual
posso resumir numa inexplicável fascinação pelo nada.
Isso mesmo! O nada, o vazio, o fim absoluto é
justamente o ponto de partida para muitas
obras que, por sua vez, influenciarão mais pessoas a uma maior e mais
abrangente fascinação pelo nada, pelo vazio, pelo fim
absoluto,numa espiral aparentemente paradoxal, onde o nada torna-se, “causa” de algo (que o velho
Parmênides me perdoe!…).
Contudo, creio que posso me redimir ante Parmênides, filósofo
pré-socrático tão avesso à ideia de vazio, do não-ser. Na verdade não é o nada que está causando algo, mas o fascínio pelo nada, o que já é algo. Fascinar-se,
aliás, é essencialmente a mola propulsora que move o escritor, o autor, o
escultor, o pintor, o músico, o ator, enfim, o artista que será a causa
eficiente de uma obra que, dada a genialidade devida, parecerá criar vida
própria, sendo mais do que um mero “porta-voz” de determinado estado de
espírito de quem o(a) criou. É por isso que não devemos subestimar nenhuma
forma de arte que o Homem produz, pois a arte tem essa característica um tanto
mágica, misteriosa, de transmitir mensagens como que por vida própria. E estas
mensagens soam de modos diferentes para pessoas diferentes. Tais diferenças, em
geral, às que me refiro aqui, não são porém de qualidade,
mas de quantidade. Não há, ao meu ver, como alguém pode
extrair felicidade de uma peça feita, criada para destacar morbidez. Sentir
alegria do mórbido é puro nonsense. Daí a
conclusão que me parece óbvia: uma peça mórbida irá provocar
consequentemente mais ou menos morbidez na maioria das pessoas normais,
sendo que esta mesma morbidez, por sua vez, será causa de mais ou menos morbidez de pessoa para pessoa.
Hoje, inspirar é relativamente fácil, se você tiver talento e for
esperto o suficiente para usar os meios necessários de que dispomos –
principalmente os tecnológicos – a fim de fazer conhecidas suas ideias e expor
seu talento. Decidi, então, usar um exemplo qualquer de determinada peça
artística que fosse fruto de alguém ou algum grupo que, certamente, é ou foi
motivo de inspiração para muita gente. Na pós-modernidade o niilismo avançou
com força total, evolução da ideia de mera abstração filosófica dos moldes do
século XIX, para um enlace pragmático avassalador nas letras e performances de
bandas de pop rock do mundo
contemporâneo. Sendo assim, não foi tão difícil valer-me de uma canção dessas
bandas, cuja melodia é envolvente, justamente porque a inspiração moderna está
presente numa elevadíssima intensidade. O resultado não poderia ser outro:
genialidade misturada à melancolia do niilismo que é tão ovacionado por uma
juventude que gosta de curtir a morbidez do vazio (ainda
que em sua maioria desconheça os significados de “niilismo” e “mórbido”). Mas,
como a questão não é semântica e sim de ordem prática, o legado melancólico do
niilismo filosófico do século XIX desembocou como uma avassaladora força
pragmática em uma considerável parcela artística da música do século XXI…….e
você quer um exemplo melhor de arte pragmática do
que um show de pop rock?
A música em questão tem até um título sugestivo, Empty (Vazios), e é da cultuada banda The Cranberries, cuja sonoridade vocal da líder,
Dolores O´Riordan, é uma marca indelével de boa parcela da preferência musical
dos jovens ocidentais. Ei-la:
Empty
Something has left my life
And I dont know where it went to
Somebody caused me strife
And its not what I was seeking
Didn’t you see me? Didn’t you hear me?
Didn’t you see me standing there?
Why did you turn out the lights?
Did you know that I was sleeping?
Say a prayer for me
Help me to feel the strength I did
My identity has it been taken
Is my heart breaking
On me?
All my plans, they fell through my hands
They fell through my hands
On me
All my dreams, it suddenly seems, it suddenly seems
Empty.
Vazios
Algo levou minha
vida
E eu não sei para
onde ela foi
Alguém me causou um
conflito
E não é o que eu
estava procurando
Você não me
enxergou? Você não me escutou?
Você não me
enxergou parada lá?
Porque você
desligou as luzes?
Você sabia que eu
estava dormindo?
Faça uma oração por
mim
Me ajude a sentir a
força que eu sentia
Minha identidade
foi levada
Meu coração está se
partindo
Em mim?
Todos os meus
planos caíram das minhas mãos
Eles caíram das
minhas mãos em mim
Todos os meus
sonhos de repente parecem, De repente parecem
Vazios
Vazios.
Quanta intensidade
para falar do….. vazio! Notou que é sobre isso que a
música trata? Identidade, planos, sonhos….vazios.
Mas, curiosamente, misturada à melodia instrumental e, obviamente, à
performance da vocalista, a música ganha certo sentido! Faz sentido escutá-la, mesmo que ela essencialmente
trate do…..nada! O que sobra, então, senão nada? É aqui que vemos
o paradoxo aparente: nada causando algo. Mas, o paradoxo é só aparente. De fato, algo está causando algo: o sentimento acerca do nada, que, com toda
a probabilidade foi um, senão o maior, motivo de inspiração da canção, e é o
que, na verdade, inspirará outros tantos a divulgarem o trabalho do The Cranberries (o que, diga-se de passagem, já tem
sido feito: o grupo agradece). O que, portanto, torna o feito de uma música de
determinado grupo da Irlanda ser celebrada mundo afora, quando sua mensagem é
basicamente sobre “vidas, planos e sonhos vazios“?
A resposta não pode ser só a letra ou o conteúdo imediato do centro da canção,
muito menos apenas a forma como aquela mesma mensagem vem “embrulhada para
presente”, isto é, o arranjo melódico para os ouvidos de adolescentes e jovens,
homens e mulheres, que com certeza inspirar-se-ão escutando Vazio do The Cranberries.
Ora, mas se a coisa não está presente no conteúdo apenas, ou
somente na forma, onde estaria? Resposta: no legado contemporâneo da melancolia niilista da modernidade,
cujo apelo encontrou sua “galinha dos ovos de ouro” nas pragmáticas
performances dos palcos de bandas de pop rock “deprê”, as
quais, por sua vez, encontram guarida nos corações de adolescentes e jovens
ocidentais, os tornaram-se cultores do niiliismo.
Este perpetua-se, como na canção do Cranberries: ocasionalmente
sendo a principal causa de verdadeiras “obras-primas contemporâneas” .
Opa, espere aí!…. Antes de deduzir se gosto ou não do Cranberries, chamo a atenção para algo para uma
pergunta muito mais importante do que uma simples questão de preferência
mundana. Por quê? Por que há tantos adolescentes e jovens
que juntam-se para ouvir uma bela melodia sobre o nada? Ou por que afastam-se do mundo real e perdem-se
no ilusório encanto que parece ter o vazio? Jovens absortos e cultores do
vazio tornar-se-ão pais, mães, sociólogos, psicólogos, filósofos, professores,
pedagogos não menos entusiastas do mesmo vazio, o qual podemos
chamar de niilismo pragmático, dada a força
com que se propaga, auxiliado pela inestimável contribuição da tecnologia, o
que o faz chegar não só aos recônditos da Terra, como, na mesma proporção, aos
recônditos da alma. À medida em que a cultura do niilismo
pragmático se dissemina, aumenta o nível de inspiração que este
mesmo sentimento quanto ao niilismo causa, o que gerará ainda mais niilismo, ao
ponto de vermos, como temos cansativamente visto, nosso sentimento em relação
ao vazio como uma das maiores fontes de inspiração
para um sem número de adolescentes e jovens filhos da modernidade, tornando-se
infelizmente “a geração do nada”. Ora, se cultuamos de um modo geral o nada, não é necessário ser um Ph.D. em astrofísica para
saber que é muito fácil observarmos que tudo o que advém da cultura do nada encontra espaço proeminente no
campo da inspiração artística (pós)moderna. Logo, o nada passa a ser objeto central de um “culto” (“cultura”, entendeu?) que evocará o vazio para quaisquer
áreas dos nossos sentimentos. Não é sem explicação, por exemplo, que o tema da morte seja tão cultuado nos dias atuais. E
tornou-se, aliás, uma obsessão para muitos pensadores, filósofos do século XX,
os quais tentaram encontrar resposta às suas indagações na serenidade do vazio
incognoscível da morte.
Como um fim inevitável, a morte passou a ser algo, para nós como
sociedade, um assunto que beira a veneração. Voltemos à chamada cultura pop no cinema. Há décadas que não se
celebra a vida, mas a morte, ou, ao menos, as situações ridiculamente
desesperadores em que os personagens de variadas películas, ou perderam suas
vidas ou passaram um bom tempo em situações de iminência da morte. São estas
mesmas situações que fazem com que venhamos a prestar nosso “culto” à determinado filme, e, aqui, digo “culto”
no sentido de “reverenciarmos”. Não me entenda mal, prezado leitor. Não falo de
“reverência” no sentido formal da palavra, mas no sentido prático. Se
desprendermos horas e horas anuais para assistirmos fugas eletrizantes, tiroteios inimagináveis, destruições
apocalípticas, mortes nos mais elevados graus de criatividade, associando isso
tudo a vampirismo, licantropia (ou “lobisoinismo”..rs), bruxaria e suas
evocações de mortos, além da moda do momento, zumbis, então
podemos afirmar que a indústria da 7ª Arte entendeu
que, não somente reverenciamos a morte – e tudo o que ela filosoficamente
representa -, como estamos dispostos a pagar montanhas de dinheiro para nos
aproximarmos dela e do quanto ela nos fascina.
Você, prezado(a) leitor(a), talvez ainda não tenha feito todas as
associações sugeridas neste breve texto; mas, de tudo o que foi dito, gostaria
de que meditasse na assertiva que tentei defender, ao longo do texto, ou seja,
que este legado moderno influenciou muitos e os mais variados
aspectos de nossa cultura: da política às relações intrafamiliares,
o niilismo pragmático inspirou ideias que, a médio e longo prazos, dividiriam
reinados, destruiriam nações (vide a histórias nas nações politicamente
niilistas, como as comunistas), ceifariam milhões de vidas e que, por fim,
alastrar-se-iam por todo o hemisfério ocidental, agarrando-se à alma do jovem
contemporâneo para fazê-lo “curtir” a condição de estar perdido dentro de si
mesmo. O niilismo é uma espiral sem fundo que surge diante da consciência
humana como uma armadilha mortal. Os que nela caem, a princípio não se
machucam, mas, curiosa e estranhamente, veem-se diante de uma espécie de poço sem
fundo, no qual, durante a queda, desapercebidamente passamos por uma infinidade
de outras armadilhas.
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