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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Uma ´casca de banana´ filosófica

PARALAXE CONCEITUAL

Apesar da imagem acima ser uma montagem e uma ilusão de ótica, ilustra algo sobre a paralax conceitual: a "posição" em que se encontra o idealizador de determinada filosofia tenderá a enganá-lo enquanto ele crê, piamente, nas conclusões que gera desta mesma posição. Para ver que não há dois homens na foto, acima, mas um só é necessário "sair da posição" em que foi tirada a foto. Às vezes nos deparamos com circunstâncias que, por conta de suas próprias características, propiciam a formação da "paralaxe conceitual". Em tempo: o "homem", à esquerda, é o falso.. e a "cerveja e o copo", à direita, também!

Toda afirmação filosófica sobre a realidade em geral, a humanidade em geral ou o conhecimento em geral inclui necessariamente, entre os objetos a que se aplica, a pessoa real do emissor e a situação de discurso na qual a afirmação é feita. O que quer que um homem diga sobre esses assuntos ele diz também sobre si mesmo. Ninguém tem o direito de constituir-se, sem mais nem menos, em exceção a uma teoria que pretenda versar sobre o gênero ou espécie a que ele próprio pertence. Essa elementar precaução metodológica foi negligenciada por praticamente todos os filósofos mais importantes do ciclo dito "moderno", assim como por muitas das escolas de pensamento que dominam o universo intelectual contemporâneo.

Em resultado, temos uma imponente galeria de doutrinas que nada nos dizem sobre o mundo em que foram produzidas, nem muito menos sobre as pessoas reais que as criaram, mas tudo sobre um mundo inventado que não as inclui e que elas se limitam a observar desde fora, desde um imaginário posto de observação privilegiado. Esse posto de observação corresponde, estrutural e funcionalmente, ao do "narrador onisciente" nas obras de ficção, o qual não é afetado pelo curso dos acontecimentos narrados. Construídas com uma técnica ficcional, mas totalmente inconscientes do expediente que empregam, essas filosofias são obras de ficção que não ousam se apresentar como tais.

Alguns exemplos

Descartes diz que vai examinar seriamente os seus próprios pensamentos, e começa a fazê-lo sob forma de introspecção autobiográfica. No meio do caminho, perde o fio do seu eu pessoal e concreto, do seu eu biográfico, e começa a falar de um eu genérico e abstrato, o "eu filosófico". Ele nem se dá conta do salto, e acredita continuar fazendo autobiografia quando está fazendo apenas construção lógica. Ele acaba acreditando que é realmente esse eu filosófico, sob cuja sombra o eu real desaparece por completo. Resultado: sua auto-observação cai nos erros mais grosseiros, como por exemplo o de esquecer que a continuidade temporal do eu é um pressuposto do cogito e não uma conclusão obtida dele.

David Hume diz que nossas idéias gerais não têm valor cognitivo nenhum, porque são apenas aglomerados fortuitos de sensações corporais. Em nenhum instante ele se dá conta de que a filosofia de David Hume, compondo-se ela própria de idéias gerais assim formadas, também não pode valer grande coisa. O estado de alienação do filósofo ao criar sua filosofia não poderia ser mais completo.

Algumas filosofias versam sobre mundos impossíveis, pois são tão absurdos quanto esta obra, de Escher, com duas mãos que surgem porque uma está criando a outra. Esta imagem evoca um paradoxo, que não pode existir efetivamente.. só na mente de quem a idealizou.

Maquiavel ensina que o Príncipe deve conquistar o poder absoluto e em seguida livrar-se dos que o ajudaram a subir. Ora, quem pode ter ajudado mais ao Príncipe do que o filósofo que lhe ensinou a fórmula da conquista do poder absoluto? Se o Príncipe o levasse a sério, ele próprio, Nicolau Maquiavel, seria o primeiro a ser jogado no lixo junto com o seu livro, prova do crime. Contrariando o louvor geral que consagra Maquiavel como o primeiro observador "realista" da política, o Príncipe é um modelo idealizado que só pode ser descrito em literatura precisamente na medida em que nenhum contemporâneo logre encarná-lo na realidade. A alienação chega ao cúmulo quando Maquiavel diz que todos os males do Estado vêm dos intelectuais contemplativos que, não podendo atuar na política, teorizam sobre ela -- o que é precisamente o que ele está fazendo. Aliás, Otto Maria Carpeaux já havia assinalado que a visão que Maquiavel tem da política não é política: é estética.

Karl Marx assegura que só o proletariado, por ser a última e extrema vítima da alienação, pode apreender realisticamente o curso inteiro do processo alienante e, por isso, libertar-se dele. Só o proletariado, em suma, tem adequada consciência histórica. Mas não é mesmo uma coisa extraordinária que o primeiro, logo o primeiro a personificar essa consciência proletária seja um burguês? Não digo que isso seja impossível, mas, à luz da teoria marxista, é uma exceção notabilíssima e improvável. Karl Marx passa sobre ela com a maior inocência, sem nem de longe notar um desvio de foco, uma paralaxe entre o personagem que representa e o conteúdo das suas falas. No mundo de Karl Marx, não existe Karl Marx.

E por aí vai. Ao exame meticuloso desses e de muitos outros casos similares tenho dedicado meus cursos desde há alguns anos. O lado mais interessante é a crítica ficcional da filosofia ficcional. De fato, os melhores observadores críticos da alienação filosófica foram os escritores de ficção, principalmente Dostoiévski, Kafka, Pirandello, Ionesco e Camus. Os Demônios, O Processo, Henrique IV, O Rinoceronte e O Estrangeiro são peças de um imenso requisitório literário contra as pretensões da filosofia moderna. Vale aí o contraste delineado por Saul Bellow entre o "intelectual" e o "escritor": de um lado, o construtor de alienações elegantes; de outro, o porta-voz das "impressões autênticas", verdades às vezes simplórias que estouram o balão intelectual. Já viram, né? Quando eu crescer, quero ser "escritor".

Fonte: Olavo de Carvalho

NOTA: E você pode estar se perguntando, prezado leitor: - E o Olavo... não caiu ele próprio em sua própria "paralaxe conceitual?". A resposta é "não" a partir do fato de o filósofo não ter feito generalizações, mas citou exemplos pontuais. Aliás, este é um dos grandes perigos das generalizações - tendem a ter um efeito reflexivo que, se mal empregado, invalidará seu próprio progenitor. Incrivelmente, isto é exatamente o que tem acontecido com algumas filosofias da modernidade e das pós-modernidade. Se o "paralaxe conceitual" não for observado há tempo, pode causar um dano irreversível àquele que foi induzido ao erro de perspectiva. Incrivelmente, são alguns dos filósofos que constituem-se, também, seus próprios carrascos. Certeza plena: a perspectiva divina, que é ilimitada. E esta foi "impressa" naquilo que está escrito em Sua Palavra!

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