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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O perigo de um argumento cheio de passionalismo, mas vazio de conteúdo

"CRIAÇÕES DE DEUS E A RETÓRICA DO DIABO"

Há muitos anos, participei de um debate sobre direito de propriedade, reforma agrária, MST, invasões, etc.. Não lembro mais o título do evento, mas a instituição promotora era uma organização religiosa. O debate consistia em uma série de sucessivas e breves manifestações, coisa do tipo cinco minutos cada para um, entre eu e o meu contendor, a quem vamos chamar, aqui, de "o outro".Fui o primeiro a falar, expondo o que penso a esse respeito. Quando conclui a exortação inicial, senti que meus pontos de vista haviam sensibilizado o auditório. O outro proferiu umas poucas palavras, deu de mão num violão e, com bela voz, desatou uma canção cujo refrão, várias vezes repetido, dizia mais ou menos assim: "Deus criou o mundo para todos. E o diabo fez as cercas". O efeito no auditório foi arrasador. Percebi que quase todo mundo se bandeara para o lado oposto.

Era preciso argumentar. Foi o que fiz, denunciando que aquele refrão continha conhecida arapuca retórica, dessas que são usadas quando alguém quer vencer um debate sem ter razão. No caso, tratava-se de afirmar algo absolutamente correto - "Deus criou o mundo para todos" - e de justapor a e essa afirmação, uma outra, inteiramente falsa, na expectativa de que a segunda, assim, meio que por osmose, ganhe credibilidade pelo contato com a primeira. Deus criara o mundo sem cerca e sem uma infinidade de outras coisas necessárias, como paredes, telhados e portas, lavouras, silos, estradas, linhas de transmissão de energia, sistemas de irrigação e drenagem, planos de saúde e por aí afora. Afirmar que tais iniciativas, bens e serviços eram criações demoníacas apenas por não terem saído das mãos de Deus constituía um disparate... Deus atribuíra ao homem dar continuidade à sua obra criadora. E isso era uma grande responsabilidade.

O outro não se deu por achado e voltou à carga, desta feita sem violão. Ele, agora, queria argumentar. Afirmou que as benfeitorias humanas que eu havia descrito - telhados, paredes, portas, etc. - eram derivadas daqueles bens originalmente criados por Deus para todos e, por consequência dessa ordem natural da Criação, deveriam estar à disposição de todos, sem qualquer apropriação individual. Armara outra armadilha retórica, como demonstrei ao público. Ela era idêntica à anterior na finalidade, mas diferente na forma. Tratava-se de fazer uma afirmação correta - a de que aquelas benfeitorias eram derivadas da Criação - extraindo daí uma conclusão disparatada. A vítima do embuste era levada a crer que de uma afirmação verdadeira só se extraem conclusões verdadeiras. Mas isso é falso.


Na verdade, Deus criara para todos e não designara o modo como suas criaturas humanas haveriam de gerir tais bens. Deixou tal tema à deliberação dos povos. E os povos, autonomamente, podem decidir se o fazem: a) sob regime de propriedade privada entendida de um modo insusceptível de restrição; b) sob regime propriedade privada onerada pela função social; c) sob regime de apropriação dos bens pelo Estado; d) sob regime de uma confusa administração coletiva, sem qualquer espécie de proprietários, fórmula que estava sendo defendida pelo outro. Acrescentei que a primeira era uma evidente fonte de dominação; que a segunda, herdeira da sã filosofia e do Direito Natural, era adotada em quase todas as sociedades modernas; que a terceira, experimentada durante várias décadas pelos países comunistas, foi mãe da miséria social e do totalitarismo por concentrar no Estado o poder político e o poder econômico; e que a quarta jamais fora testada por ser absolutamente insana. A ideia de um mundo no qual tudo pertencesse a todos poderia ser graficamente representada como a antecâmara do inferno.

Quando a palavra retornou ao meu oponente, ele apelou para o Ato dos Apóstolos, livro do Novo Testamento que relata a vida dos primeiros tempos do cristianismo. Ali, no capítulo 4, versículos 32 a 34, leu o que se conhece: os primeiros cristãos tinham tudo em comum e não havia necessitados entre eles. Completada a leitura, olhou-me e disse: "De onde tirou o senhor a ideia de que Deus não se manifestou sobre o assunto? Aí está, na experiência dos primeiros cristãos, o projeto do Criador".

O que estávamos assistindo a era uma terceira armadilha retórica... O outro sabia o que estava fazendo, mas o auditório tende a crer em quem fala com a Bíblia na mão. Quando me retornou o microfone, mostrei que ele havia proclamado apenas meia verdade. A outra parte da verdade ficara ardilosamente oculta por ser inconveniente à tese que ele sustentava. E qual era essa outra metade? Ora, os primeiros cristãos de Jerusalém, convencidos de que o Mestre voltaria em breve para Juízo Final, venderam o que tinham e colocaram seus bens em comum. Passavam o tempo em oração, curando enfermos e pregando ao povo. De fato, não houve necessitados entre eles, até acabarem as provisões e os recursos materiais.


A atitude que haviam adotado perante as necessidades da vida trouxe consequências que transparecem das epístolas em que o apóstolo Paulo (retrato, acima), escrevendo aos Romanos e aos Coríntios, conclama essas comunidades a socorrerem "os pobres que há entre os santos de Jerusalém". Já na sua Segunda Carta aos Tessalonicenses, o apóstolo dos gentios, preocupado com que via acontecer, advertia: "Quem não trabalhar, também não há de comer". Com efeito, quem estende um colchonete no chão e fica esperando que Deus o socorra ou que alguém o regale com o fim da pobreza, acaba na fila da cesta básica ou no bolsa-família.

Fonte: Mídia sem Máscara

NOTA: Talvez reduzir a koinonia eclesial, vista a partir do registro de Atos dos Apóstolos, apenas a uma expectação errônea sobre a vinda iminente de Jesus, como pensava a Igreja, seja um minimalismo que não condiz à realidade dos fatos. Porém, é óbvio que tal expectativa estava presente e, de certa forma, movia muito das ações da Igreja, cujas práticas e anseios eram registrados em Atos. Todavia, a tese principal do presente artigo é expor as falácias existentes no debate que aqui fora narrado. Falácias argumentativas são, muitas vezes, ilusões difíceis de serem discernidas como tal, e, por isso, causam ideologias extremamente equivocadas em relação à natureza real dos fatos.

Em Cristo Jesus,
Pr. Artur Eduardo

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