No projeto Cultura Sem Limites, ciclo de cursos a ser ministrados a partir deste mês, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, dois dos cursos são altamente complementares entre si, por tratarem da mesma temática. O que eu mesmo vou ministrar no mês de maio, sobre o Fausto, de Goethe, e o curso do Professor Élcio Verçosa, que terá início no final de março, que trata da obra de Dostoievski, Os Irmãos Karamazov.
Goethe é o cronista do nascimento do relativismo moral, dando-lhe uma base teológica que tem raiz no nominalismo. O tema da obra é mesmo cantar o microcosmo, o símbolo por excelência do mal, que perpassa a obra do princípio ao fim. É a estrela da manhã. Não ao acaso o poeta Paul Celan, que viveu os tormentos do século XX e era leitor atento de Goethe, iniciou seu poema Fuga da Morte com versos que não deixam dúvidas: "Leite negro da madrugada nós bebemo-lo ao anoitecer/Nós bebemo-lo ao meio-dia e de manhã nós/bebemo-lo à noite/Bebemos e bebemos"
O leite negro da madrugada é o símbolo máximo de Satã, que pairava nos campos de concentração, onde Celan foi confinado. No Fausto, o símbolo está no quarto gótico do intelectual entediado, no tempo em que ainda a arrogância moderna se escorava na lei da analogia gnóstica ("o que está em baixo é como o que está em cima") para cultuar o mal. Essa lei foi depois abandonada com a declaração da "Morte de Deus", por Nietzsche, que inaugurará o século XX, de triste memória. Goethe leva tão longe seu canto ao símbolo satânico que fez Helena, personagem do Segundo Fausto, entrar em conúbio com o "Favorecido" e ter com ele um filho, Euforion, o filho da modernidade. Quem é Helena? É um símbolo que retrata Vênus, a máxima beleza. Helena é a mesma Vênus que é a estrela da manhã e a estrela vespertina, em outro lugar tão lindamente cantada por Samuel Beckett (Mal Visto, Mal Dito).
Dostoievski, especialmente no livro Os Irmãos Karamazov, discutiu também o mal, mas de uma perspectiva cristã. Aliás, dentro do cristianismo (católico, grifo nosso) há duas correntes que entendem o mal de modo diverso: uma, na linha agostiniana, que teve em João Paulo II um seguidor, o vê como mera ausência do bem, numa visão que chamo intelectualista; outra, conforme os ensinamentos de Paulo VI, e dentro da tradição da letra dos Evangelhos, o vê como personificação ativa que age na história. A minha própria intuição é que o mal não apenas é personificado e age na história, como também aprende no processo histórico e, com isso, potencia sua própria maldade a cada momento. O tenebroso século XX é o reflexo desse aprendizado de milênios.
Se Goethe pressentiu a avassaladora presença do mal em seu tempo, dominando as Letras e a política, tendo aderido incondicionalmente ao signo dos tempos e inimizando-se com a Igreja Católica, o autor russo fez o caminho oposto: denunciou o mal, ergueu a tradição cristã como antídoto, mostrou que a bondade não pode ser derrotada pela maldade. Dostoievski foi um grande psicólogo. Ler ambos os autores em seqüência é uma dádiva pedagógica e uma oportunidade rara. Dostoievski é assim inimigo das novas religiões políticas nascidas com a modernidade e que têm servido para que o mal alcance sua plenitude de morte e destruição.
Fonte: MsM
NOTA: Em um mundo no qual "chama-se o mal, bem; e o bem, mal", não é de admirar que vejamos exemplos insidiosos terríveis, cuja análise bem poderia ser: a vida imita a arte!
Em Cristo Jesus,
Pr. Artur Eduardo
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