Um dos conceitos mais interessantes estudados por Olavo de Carvalho é, sem dúvida, é o da paralaxe cognitiva. Olavo o define como “afastamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real anunciado pelo indivíduo”, que teria se expandido após a Modernidade. Antes, os filósofosos antigos e medievais (na maioria) acreditavam que estavam dentro de uma realidade ou cosmos racionalmente ordenado, sem poder observá-lo de fora ou modificá-lo, na base, de acordo com suas vontades ou visões de mundo. A paralaxe é, na definição, como uma distorção de percepção que acaba por destruir a capacidade de conciliar a verdade factual e a teoria reflexiva, muitas vezes até intencionalmente, como em Marx e Epicuro.
Vamos lembrar: Epicuro inverteu a relação entre a teoria e prática. Normalmente, a teoria é fundamento lógico que descobre um mundo existente e dá diretrizes para a prática. Ou seja, a teoria que leva aos caminhos da prática. Para o picareta grego, é a prática reiterada que vai produzir e legitimar (artificialmente) a teoria. Epicuro não descreve o mundo como ele de fato é; mas sim propõe transformá-lo psicologicamente pela prática para que ele fique, na percepção do indivíduo, parecido com a teoria imaginada. Karl Marx e todos os seus seguidores de hoje, diretos e indiretos, também possuem influências epicúreas, afinal, os filósofos não deviam compreender o mundo, “mas transformá-lo”. Como diz Alfred Fabre-Luce, “Marx, ao preferir antes ‘transformar’ do que ‘compreender’ o mundo, era levado a escolher um pensamento por sua capacidade de mobilização.” Assim, é fácil entender porque tantos negam crimes do socialismo ou defendem absurdos como “controle feito pelo governo da imprensa para atingir a liberdade”; a teoria não serve para descobrir a realidade da ação, serve apenas para fazer apologia do fato consumado para que ele se molde ao seu interesse. Esse é o deslocamento da concepção original de teoria, que descrevia o fato objetivo, e a prática, que virou o caminho para legitimar qualquer concepção pré-estabelecida mesmo que não corresponda a nada dos fatos.
Nos debates, eu uso uma “suavização” do conceito de paralaxe cognitiva, que demonstra a contradição entre dois princípios ou entre o princípio e a ação que o indivíduo anuncia. É mais ou menos como seguir o seguinte modelo:
- (1) Não entre;
- (2) Entrada aqui.
(2) é a negação direta de (1). E mesmo assim, o sujeito bate no peito e grita por todos os cantos as duas idéias ao mesmo tempo.
Onde podemos encontrar isso no neo-ateísmo? Em muitos lugares, para falar a verdade.
Se verificarmos o discurso dos neo-ateus militantes na internet, vemos tanto a contradição interna do pensamento como contradição entre a ação e teoria. Um exemplo claro disso seria o seguinte:
- (1) Ateus não se importam com a crença dos outros, como os religiosos;
- (2) Milito o dia todo para converter às pessoas ao humanismo e termos um mundo melhor.
Ora, se “ateus não se importam” (o que já configura a fraude Representante do Ateísmo) e mesmo assim ele, ateu, passa militando o dia todo? Está na cara que é só um self-selling grupal, escondido pela paralaxe cognitiva.
Neo-ateus também gostam muito de atacar a moralidade dos religiosos…. mesmo tendo que admitir uma moralidade subjetiva!
- (1) Ateus são mais morais que religiosos, pois não fazem as coisas certas por interesse (“ir pro Céu”);
- (2) Não existe moralidade objetiva e absoluta, sendo ela apenas fruto de pressões sociobiológicas.
Vamos considerar que o final de (1) fosse verdade (apesar de ser uma frase difamatória, pois o religioso pode muito bem fazer o bem por saber, a partir do reconhecimento da moralidade objetiva, que aquilo é o certo – a recompensa é consequência, não interesse mesquinho.). O ateu teria como conciliar o início de (1) com (2)? É claro que NÃO! Afinal, se ele não reconhece que há uma diferença entre o altruísmo e o egoísmo, entre o auto-sacríficio e a vontade única de “ficar bem na fita”, diferente de uma convenção de como dobrar à direita ou à esquerda na rua, independente de a pessoa concordar com isso ou não, ele, nesse caso, aceita o argumento moral, ou seja, não pode mais ser ateu! A contradição é explícita. O máximo que ele pode dizer é “eu acho isso” ou “pelo padrão da nossa sociedade”, nunca “são”, de forma afirmativa e absoluta, pois, para o fazer, teria que ser teísta.
Alguns outros exemplos, no pensamento humanista em geral:
- (1) A ação dos indivíduos é explicada pelas influências correntes ideológicas e sociais dentro de um sistema de materialismo histórico baseado no conflito de classes;
- (2) Os crimes de Stálin não podem ser debitados na conta de sua ideologia de esquerda, pois foram causados unicamente pela maldade inata desde homem.
Ou ainda:
- (1) O conhecimento só é válido se obtido pelo método científico (ou empírico);
- (2) O conhecimento obtido em (1) é válido, mesmo não sendo obtido pelo método científico;
Outro exemplo:
- (1) Não existe verdade absoluta;
- (2) A frase acima, para ser verdade, não pode comportar excessões;
- (3) Logo, a frase (1) é uma verdade absoluta, que, conforme (1), não existe.
E assim vai.
Para identificar um caso de paralaxe cognitiva, fique atendo se a alegação do adversário não entra em contradições com os próprios princípios teóricos que ele carrega, em geral, ou que sustentam a própria frase específica. Conferir se a idéia enunciado é sustentável em si pelos valores do outro debatedor mesma é uma refutação ex concessis, conforme definida por Schopenhauer no livro Dialética Erística (ver série sobre o livro aqui) e, como disse Olavo de Carvalho nos comentários,“se o argumento pretende ser filosófico, mais lícito ainda é exigir que tenha coerência com o quadro geral das idéias do interlocutor”. (pág. 216, Comentários Suplementares).
Quem comete erros tão básicos como paralaxe cognitiva, ou aceita e corrige sua intervenção, ou já mostra que não tem qualificação para um debate sério.
Fonte: Quebrando o encanto do neoateísmo
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