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segunda-feira, 22 de abril de 2013

Breve análise das lógicas formal e informal

UM POUCO DE LÓGICA NÃO FAZ MAL A NINGUÉM!


Uma dedução é um argumento que, dadas certas coisas, algo além dessas coisas necessariamente se segue delas. É uma demonstração quando as premissas das quais a dedução parte são verdadeiras e primitivas, ou são tais que o nosso conhecimento delas teve originalmente origem em premissas que são primitivas e verdadeiras; e é uma dedução dialéctica se raciocina a partir de opiniões respeitáveis”.
Aristóteles
Afirma-se por vezes que a lógica estuda apenas demonstrações e que estas são “do domínio do apodíctico”, da verdade científica, ao passo que a argumentação “pertence ao domínio do verosímil”. Deste ponto de vista, a lógica seria limitada porque deixaria de fora a argumentação, detendo-se apenas na demonstração. Esta ideia é falsa e resulta de várias confusões. A primeira confusão compreende-se melhor com uma analogia. Ninguém afirma que a física é limitada por não estudar os fenómenos físicos, detendo-se apenas em fórmulas matemáticas. A confusão é aqui evidente: as fórmulas matemáticas são uma parte importante das teorias que procuram explicar os fenómenos físicos; é claro que as fórmulas matemáticas usadas na física não são, elas mesmas, fenómenos físicos; mas são formas de codificar, explicar e compreender os fenómenos físicos. Pode-se falar dos limites da física se ela não tiver capacidade para codificar, explicar e compreender todos os fenómenos físicos; mas é disparatado defender que a física é limitada porque os fenómenos físicos não são fórmulas matemáticas.

O mesmo acontece na lógica. É evidente que as demonstrações não são argumentos. Mas as demonstrações são modelos teóricos de argumentos; são uma das formas que a lógica tem de estudar a argumentação. Atente-se no seguinte argumento:
Como seria possível que os cépticos tivessem razão? Isso é absurdo. Se eles tivessem razão, nada poderia ser conhecido com segurança — não poderíamos saber coisa alguma, a dúvida seria universal. Mas nesse caso, os próprios argumentos dos cépticos não poderiam ser aceites.
A lógica permite compreender melhor este argumento, exibindo a sua forma lógica; para isso, formula-se o argumento na sua forma canónica, elimina-se o ruído e explicitam-se as premissas implícitas:
Se os cépticos tivessem razão, nada poderia ser conhecido.
Se nada pudesse ser conhecido, os argumentos dos cépticos não poderiam ser aceites.
Se os argumentos dos cépticos não pudessem ser aceites, eles não teriam razão.
Logo, se os cépticos tivessem razão, não teriam razão.
A forma lógica deste argumento é a seguinte:
Se P, então Q.
Se Q, então R.
Se R, então não-P.
Logo, Se P, então não-P.
A lógica permite demonstrar que esta forma argumentativa é válida, isto é, que o argumento dado tem uma forma válida. Logo, argumentos e demonstrações não são domínios diferentes de estudo; as demonstrações são instrumentos para estudar a argumentação. Consequentemente, a ideia de que a lógica seria limitada porque se dedica exclusivamente a estudar a demonstração, deixando de fora a argumentação, é falsa. As demonstrações são instrumentos para compreender a argumentação, do mesmo modo que as fórmulas matemáticas usadas na física são instrumentos para compreender os fenómenos físicos.
Uma segunda confusão que está na origem desta ideia é a seguinte: Não é verdade que a demonstração “pertença ao domínio do apodíctico”, ao passo que a argumentação “pertence ao domínio do verosímil”. Que isto não pode ser verdade segue-se da confusão que já denunciámos — pois seria como dizer que as leis da física, que se exprimem em fórmulas matemáticas, pertencem ao “domínio do estático”, ao passo que os próprios fenómenos físicos pertencem ao “domínio do dinâmico”. Mas é conveniente eliminar outra confusão que está por detrás desta ideia.
Considere-se o seguinte argumento:
Se a eutanásia fosse permitida, abria-se a porta ao assassínio de estado. Por isso, nunca devemos permitir a eutanásia.
Segundo o partidário dos limites da lógica este seria um argumento e como tal do “domínio do verosímil”, ao passo que a demonstração seria do “domínio do apodíctico”. Mas isto é uma confusão, pois este argumento pode ser logicamente demonstrado. Comece-se por colocá-lo na sua forma canónica e explicitar a premissa implícita:
Se a eutanásia fosse permitida, abria-se a porta ao assassínio de estado.
Mas não é desejável abrir a porta ao assassínio de estado.
Logo, não devemos permitir a eutanásia.
De seguida, formalize-se parcialmente o argumento, para se poder captar a sua forma lógica:
Se P, então Q.
Não-Q.
Logo, não-P.
Pode-se agora demonstrar a validade desta forma lógica, usando a notação lógica habitual:
Prem1.P → Q
Prem2.¬Q
Sup3.P
1,34.Q1,3 E→
1,2,35.Q ∧ ¬Q2,4 I∧
1,26.¬P3,5 I¬
Na primeira coluna indicam-se as dependências lógicas do argumento; na segunda, numeram-se os seus passos; na terceira, argumenta-se; e na quarta justifica-se o argumento apelando para regras. O passo 1 é uma premissa e não carece de mais justificação; o passo 2 também; o passo três é uma premissa adicional, uma suposição (que corresponde ao que fazemos ao argumentar quando dizemos “Mas supõe que...”). Escolhemos estrategicamente P como suposição, pois é isso que nos permitirá concluir o que queremos. No passo 4 aplica-se a regra E→ (eliminação da condicional), tradicionalmente conhecida por modus ponens. Esta regra é aplicada aos passos 1 e 3; e por isso indicamos que o passo 4 depende das premissas 1 e 3 (sendo que 3 é uma suposição, que terá de ser eliminada). No passo 5 limitamo-nos a aplicar a regra I∧ (introdução da conjunção), que é muito intuitiva: se alguém afirma uma coisa e outra, pode-se concluir que essa pessoa afirma as duas coisas. A regra aplicou-se aos passos 2 e 4, permitindo juntar Q e ¬Q, de modo que o passo 5 depende agora das três premissas: 1, 2 e 3. Mas o passo 5 é uma contradição; e essa contradição resulta das premissas 1, 2 e 3. Assim, pode-se negar uma das premissas que deu origem à conclusão contraditória (como quando se diz: “se tivesses razão, Platão era um alfaiate, e por isso não tens razão”). Isso é o que se faz no passo 6: nega-se a suposição do qual o passo 5 dependia, aplicando a regra I¬ (introdução da negação, ou redução ao absurdo, como é tradicionalmente conhecida) aos passos 3 e 5; e o passo 6 já não depende da suposição do passo 3, porque foi precisamente essa suposição que se acabou de negar. E assim se conclui ¬P a partir das premissas P → Q e ¬Q.


O que se fez foi caminhar muito devagar, passo por passo, aplicando regras transparentes que se podem justificar independentemente; fez-se isto para garantir que não nos enganamos ao argumentar. E o que se mostrou foi que o argumento original tem uma forma válida. Assim, uma demonstração tem uma relação muito precisa com o argumento que demonstra: é um modelo teórico que explica a conexão lógica existente entre as premissas do argumento dado e a sua conclusão. Acresce que o argumento original seria, do ponto de vista do defensor da distinção entre demonstração e argumentação, indemonstrável, pois é um argumento do “domínio do verosímil” e não do “domínio do apodíctico”. Contudo, a lógica consegue demonstrar que um argumento do “domínio do verosímil” é válido. Defender que uma demonstração é diferente de um argumento porque a primeira, mas não a última, é do “domínio do apodíctico” só pode resultar de uma confusão entre 1 e 2:
  1. O tipo de conexão que existe entre as premissas de um argumento e a sua conclusão;
  2. O tipo de premissas e conclusões que um argumento tem.
Confundir 1 e 2 é não compreender a distinção entre verdade e validade, e por isso não saber que um argumento dedutivo válido pode ter premissas e conclusões meramente “verosímeis”, ao passo que um argumento não dedutivo pode ter premissas e conclusões “apodícticas”. O argumento apresentado atrás seria do domínio do “verosímil”, mas pode ser demonstrado pela lógica, pois trata-se de uma dedução válida. E há argumentos que são do “domínio do apodíctico” apesar de não serem dedutivamente válidos — o que significa que não podem ser demonstrados pela lógica. Considere-se o seguinte exemplo:
Até hoje, a Terra sempre completou uma revolução em torno do seu eixo em cada 24 horas.
Logo, dentro de 24 horas a Terra estará virada para o mesmo sítio que está agora.
A premissa e conclusão deste argumento são do “domínio do apodíctico”, dado que se tratam de verdades científicas. Todavia, o argumento não é dedutivamente válido; talvez seja válido (caso se acrescente algumas premissas suprimidas), mas a sua validade não é dedutiva, mas sim indutiva. Não se pode por isso demonstrar que é válido. Em suma: a desejada distinção entre a demonstração, que seria do “domínio do apodíctico”, e a argumentação, que seria do “domínio do verosímil”, está errada. Por um lado, pode-se demonstrar a validade de argumentos “do domínio do verosímil”; por outro, há argumentos do “domínio do apodíctico” que não se pode demonstrar.

As confusões nas quais se baseia a pretensa distinção entre argumentação e demonstração podem ser esclarecidas com duas distinções correctas e “operativas”: a distinção entre a verdade das afirmações e a validade da argumentação, por um lado, e a distinção entre argumentos dedutivos e não dedutivos. Como vimos, a validade é uma propriedade dos argumentos e não das premissas e conclusões dos argumentos. É por isso que há argumentos “apodícticos” com premissas “meramente verosímeis”: argumentos dedutivos válidos — demonstráveis — com premissas morais, estéticas, religiosas, etc., cuja verdade é disputável. E é também por isso que há argumentos “meramente verosímeis”, isto é, não-dedutivos, com premissas “apodícticas”, isto é, premissas que exprimem verdades lógicas, matemáticas, científicas, etc., que não são objecto de disputa.

Quando Aristóteles refere a diferença entre o que ele chama “demonstração” e o que ele chama “dedução dialéctica” não se refere às demonstrações da lógica nem à ideia falsa de que as demonstrações lógicas se distinguem da argumentação. Aristóteles refere-se unicamente ao facto de as premissas de uma dedução serem ou não objecto de disputa. E como vimos, tanto se pode demonstrar logicamente um argumento cujas premissas são objecto de disputa, como há argumentos cujas premissas não são objecto de disputa e que não podem ser demonstrados pela lógica. O diagrama que representa os diferentes tipos de argumentos permite compreender melhor o que Aristóteles tem em mente:
Argumentos demonstrativos e dialécticos
Aristóteles classifica como argumentos demonstrativos aqueles argumentos dedutivos válidos cujas premissas são verdadeiras ou estão amplamente estabelecidas — o que hoje chamamos “argumentos sólidos”. E classifica como argumentos dialécticos os argumentos dedutivos válidos cujas premissas são disputáveis. Não se segue do que Aristóteles afirma que não se pode demonstrar logicamente um argumento dialéctico — o que seria falso, como vimos. O termo “demonstração” não é usado por Aristóteles para referir demonstrações lógicas ou derivações (que não existiam no seu tempo), mas antes argumentos dedutivos válidos com premissas verdadeiras (argumentos sólidos); consequentemente, a “argumentação dialéctica” não se opõe às demonstrações lógicas, mas antes aos argumentos cujas premissas são verdadeiras (isto é, aos argumentos sólidos).

Considere-se os argumentos apresentados sobre a eutanásia e os cépticos. Como é evidente, tais argumentos estão longe de ser aceitáveis, apesar de serem válidos e apesar de a sua validade ser demonstrável pela lógica formal. Os argumentos não são aceitáveis porque partem de premissas discutíveis; o que significa que é necessário argumentar a favor dessas premissas. Fazê-lo é repetir o processo normal de argumentação: é apresentar argumentos a favor das premissas — e uma vez mais esses argumentos serão ou dedutivos ou não dedutivos, válidos ou inválidos, e terão premissas discutíveis ou não. Mas nada depende do carácter “apodíctico” ou “meramente verosímil” da argumentação, nem da falsa oposição entre demonstração lógica e argumentação. 

Perante um argumento, o trabalho crítico consiste em determinar a sua validade. Se for inválido, as suas premissas não nos dão qualquer razão para aceitar a sua conclusão, e nada mais há para discutir. Se for válido, é irracional aceitar as premissas e recusar a conclusão — mas é necessário discutir as premissas do argumento, o que só pode fazer-se recorrendo a novos argumentos. Esta é a dinâmica de toda a discussão rigorosa de qualquer assunto — matemática ou ética, música ou física, biologia ou religião (a própria lógica, como todas as disciplinas do conhecimento, está longe de estar acabada e abundam as discussões sobre diferentes teorias lógicas modernas, que resolvem de forma diferente os problemas da lógica). As distinções entre o “domínio do apodíctico” e o “domínio do verosímil”, e entre a argumentação e a demonstração lógica, em nada ajudam a compreender esta dinâmica, e são até um sério obstáculo a essa compreensão.

Retórica e lógica informal

Por “retórica” pode-se entender um conjunto de regras que têm por objectivo tornar mais clara a expressão dos argumentos; este sentido de “retórica” coincide com o que hoje se chama “lógica informal”. Mas por “retórica” pode entender-se outra coisa: a arte de persuadir independentemente da validade dos argumentos.
O papel da lógica informal pode ser ilustrado com o seguinte argumento:
1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos, temos de os ensinar a formular com clareza, precisão e criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos alunos.
C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
Do ponto de vista da lógica formal é indiferente apresentar o argumento por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por 2 em vez de 1. No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível se começarmos por 2. A lógica informal aconselha a começar por 2 (cf. Weston, Anthony, A Arte de Argumentar, Gradiva, Lisboa, 1996, págs. 21-23). Contudo, a retórica aconselha a não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. Enquanto a lógica informal é uma actividade que tem como objectivo o argumento válido persuasivo, a retórica tem por objectivo único persuadir o interlocutor — e é mais fácil persuadir o interlocutor quando ele não consegue avaliar o argumento em causa por ficar confundido, uma vez que assim também não consegue refutá-lo. Enquanto a lógica informal tem por objectivo oferecer a possibilidade do pensamento crítico, a retórica tem por objectivo silenciar o pensamento crítico e persuadir a outra pessoa, independentemente da validade dos argumentos apresentados.


Nenhuma retórica pode transformar um argumento mau num bom argumento; o que a retórica pode fazer, no máximo, é disfarçá-lo; mas não ajuda a apresentar argumentos válidos nem a denunciar os inválidos. É a lógica informal que ajuda a fazer ambas as coisas.
Tanto a lógica informal como a retórica têm em conta o auditório, mas de modos distintos. Do ponto de vista da retórica qualquer argumento que convença um auditório é bom, pois a persuasão é a única medida da argumentação. Mas é evidente que as piores falácias podem persuadir muitos auditórios, e nem por isso deixarão de ser falácias, ainda que sejam falácias persuasivas (aliás, por definição, uma falácia é um argumento inválido que é persuasivo porque parece válido, e portanto a retórica é incapaz de explicar o próprio conceito de falácia). Para a lógica informal, pelo contrário, o auditório é importante mas não determina só por si a validade ou invalidade da argumentação. O auditório é importante na lógica informal porque, por exemplo, ao argumentar a favor de uma dada ideia temos de escolher premissas que consideremos verdadeiras e que sejam aceitáveis para o nosso auditório; caso contrário estaremos a falar apenas para quem já aceita as nossas ideias. É por isso que o seguinte argumento é mau:
O aborto não deve ser permitido, porque é o assassínio de inocentes.
Este argumento é mau porque quem não aceita a conclusão (“O aborto não deve ser permitido”) também não aceita a premissa (“O aborto é o assassínio de inocentes”). A argumentação criativa é a arte de mostrar que há argumentos válidos a favor de P que partem de premissas que quem é contra P está disposto a aceitar. E esta arte não se adquire com o estudo da retórica, mas sim com o estudo da lógica informal.

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