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sábado, 27 de julho de 2013

Remindo o tempo na era de homens ocos

REMINDO O TEMPO NA ERA DE HOMENS OCOS

Por Alex Catharino
Adaptado por Artur Eduardo

Eis como termina o mundo / Não com estrondo, mas com lamúria”. Com tais versos, T. S. Eliot encerra o poema Os Homens Ocos, de 1925. Juntamente com o enigmático A Terra Desolada, de 1921, Os Homens Ocos apresenta o âmago da desordem privada e pública, enfermidade generalizada que assolou o século XX, caracterizada como um inferno terreno, criado pelas promessas ideológicas de paraíso temporal que devastam a mentalidade moderna, ainda, no começo deste novo milênio.

Alimentados pela ideologia, os homens ocos são netos da “Idade da Razão” e filhos da “Era da Informação”. A doença que os afeta criou gerações de criaturas que temem encontrar a Verdade e recusam a reconhecer a existência do Bem e do Belo, preferindo a ilusão confortante oferecida pelo ópio ideológico. No livro A Era de T. S. Eliot: A Imaginação Moral do Século XX (É Realizações, 2011), Russell Kirk afirma que tal doença retratada pelo poeta é um inferno que “pode estar pavimentado de boas intenções”, ressaltando que “este é o inferno dos intelectuais que põem a confiança ‘naquela parte do presente que já está morta’; é o inferno do oportunista na política; é o inferno do homem sensual mediano que prefere a diversão efêmera ao amor pelo dever e sacrifício; é o inferno a que descem muitos homens, em todas as épocas; também é o inferno que mais está em conformidade com a infidelidade do século XX”.

A identidade do século passado foi moldada pelo declínio dos valores tradicionais cristãos, substituídos por ideologias seculares de esquerda ou de direita, responsáveis, em última instância, por guerras, revoluções, genocídios, crises econômicas, degradação cultural e pelo relativismo moral do período. As raízes desse inferno não podem ser entendidas como um mal isolado que afeta apenas a alma de alguns indivíduos, nem como crises específicas de culturas particulares, que podem ser mapeadas pela análise de acontecimentos estanques. Manifestam-se, multifacetadamente, em diversas crises particulares na religião, cultura, moral, família, política e economia; em suma, é a crise da Civilização Ocidental na modernidade, um fenômeno universal e uno, resultado da própria crise de identidade do homem ocidental. Para compreender tal drama necessitamos entender os desvios intelectuais da modernidade, cujas raízes estão nas falsas esperanças prometidas pelas diferentes ideologias.

Encontramos o melhor questionamento a respeito dessa crise nos versos de T. S. Eliot, dos Coros da peça A Rocha, de 1934, em que pergunta: “Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento? / Onde está o conhecimento que perdemos com a informação?”. A dupla indagação do poeta pode ser respondida pela análise de dois momentos distintos do pensamento moderno e por seu reflexo tanto no modelo pedagógico como na estrutura educacional implementados, paulatinamente, em todas as sociedades ocidentais.

“Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento?”. Tal pergunta remete ao momento em que a busca da sabedoria foi substituída pelo cientificismo. Os fundamentos transcendentes das explicações sobre a natureza humana e a realidade foram abandonados em nome dos aspectos materiais. A própria Filosofia, após servir como “o andaime que construiu a ciência moderna”, viu-se subjugada; tornara-se serva da criatura que gerou.
A crítica não deve se direcionar à ciência, pois, somente ignorantes, lunáticos, ou farsantes negariam a importância das conquistas científicas da modernidade, que geraram diversos benefícios materiais para os seres humanos. Não devemos rejeitar a verdadeira ciência, mas rechaçar os abusos ideológicos do cientificismo. A mentalidade cientificista, como toda concepção ideológica, é uma espécie de religião que adota crenças reducionistas acerca da natureza humana, da realidade e da própria ciência. Ao negar a importância dos conhecimentos teológico, filosófico e do senso comum, o cientificismo advoga a crença ingênua de que as únicas formas válidas de conhecimento são as determinadas pelos critérios do método científico.

A Filosofia Moderna tem como marco inicial as reflexões de Francis Bacon, Galileu Galilei e René Descartes. Em menos de dezessete anos, as principais obras desses filósofos foram publicadas: em 1620, o Novum Organum de Bacon; em 1632, o Diálogo sobre os Sistemas do Mundo de Galileu; e, em 1637, O Discurso do Método de Descartes. Existem dois pontos convergentes entre os sistemas dos três pensadores, não obstante as inúmeras divergências teóricas. O primeiro é a tentativa consciente de ruptura com o sistema aristotélico-tomista, seguindo os passos do nominalismo medieval. O segundo é a preocupação com a criação de um método capaz de garantir acesso seguro ao conhecimento objetivo da realidade.

Tal processo intelectual foi consolidado com a publicação das obras: Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, em 1687, e Óptica, em 1704, de Isaac Newton; e, seguido pela propagação dos valores filosóficos da ciência newtoniana pelos iluministas franceses. Em menos de um século após a edição dos livros de Newton, a atuação simplificadora do iluminismo, no século XVIII, criou um padrão, o chamado “paradigma newtoniano”, que parecia oferecer a verdadeira chave racional para a explicação e transformação da realidade. Assim, foram lançadas, na Idade da Razão, as bases da ideologia cientificista, cujas consequências nefastas podem ser encontradas tanto nas teorias positivistas quanto no pensamento e na prática do liberalismo progressista e do socialismo marxista.

Como ressaltou Eric Voegelin, em A Nova Ciência da Política (UnB, 1982), o maior erro do cientificismo é a perversão da ciência em matéria de sentido, ao subordinar a pertinência teórica ao método. A crença generalizada de que o caráter científico fundamenta-se apenas na metodologia leva, principalmente nas ciências humanas, ao acúmulo de fatos teoricamente inconsistentes por pseudociências irrelevantes, que, em última instância, só servem para legitimar posturas ideológicas alheias ao verdadeiro conhecimento. Na perspectiva cientificista, o único sentido dos estudos é instrumental, pois, válido é apenas o saber como utilidade prática.

Na sociedade pautada pelo cientificismo, a busca pela sabedoria é vista como tarefa improdutiva e desprovida de racionalidade. Os princípios transcendentes e as virtudes são encarados como amontoado de dogmas restritivos à liberdade ou à igualdade. Ao encarar a tradição como produto da superstição de mentes desprovidas de objetividade, o cientificismo perverte a verdadeira função da educação, que deixa de ser o meio de transmissão do patrimônio cultural herdado pelas gerações anteriores, assumindo postura doutrinadora que visa livrar o homem de todos os “preconceitos obscurantistas e irracionais”. Dessa forma, nenhum princípio absoluto deve ser mantido ou respeitado, pois só é válido aquilo que puder ser abarcado pelo conhecimento científico, que, por sua vez, é regulado apenas pela capacidade de subjugar totalmente a natureza aos ditames da razão instrumental. Como notou C. S. Lewis, em A Abolição do Homem (Martins Fontes, 2005),“no momento mesmo da vitória do Homem sobre a Natureza, encontramos toda raça humana sujeita a alguns poucos indivíduos, e estes indivíduos sujeitos àquilo que neles mesmos é puramente ‘natural’ – aos seus próprios impulsos irracionais. A Natureza, livre dos valores, controla os Manipuladores e, por intermédio deles, toda a humanidade”.

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Na Idade da Razão, a substituição da sabedoria por um tipo de conhecimento prático deu ensejo a que esse saber utilitário, posteriormente, fosse subjugado pela informação, que veio a se tornar o instrumento dos manipuladores e o entretenimento dos manipulados. Na Era da Informação, a promessa das novas tecnologias de aproximar as pessoas, paradoxalmente, está afastando os seres humanos ao criar o novo vício de indivíduos conectados ao mundo virtual, mas desconectados da realidade. “Onde está o conhecimento que perdemos com a informação?”. Durante o século XIX, quando a crença no cientificismo atingiu o ápice, o surgimento da imprensa diária, associada ao apostolado em defesa do dogma democrático, criou as bases da Era da Informação. O estrago causado pelo predomínio da informação sobre o conhecimento deixou marcas profundas de destruição na moralidade, linguagem, artes, educação, costumes e política.

Em um cenário dominado pelo relativismo, não há compromisso intelectual com a Verdade, apenas com a opinião da maioria; aí a informação pode ser apropriada e manipulada como melhor aprouver aos desejos subjetivos. Nesse contexto, a moralidade perde qualquer relação com os absolutos morais, noções de certo e errado cuja aplicação passa a ser mera questão de preferência e escolha individual; a linguagem perde o sentido, manipulada ideologicamente pela “novafala” do politicamente correto, em que palavras passam a significar o que deseja o arbítrio de quem as profere, fazendo com que os debates sobre qualquer temática não mais se submetam à razão e aos fatos objetivos, substituídos por opiniões subjetivas expressas em jargões; e, também, a lógica argumentativa, na maioria das vezes, cede espaço às ofensas pessoais. Em tais circunstâncias, vemos descartados, na produção artística, os padrões estéticos objetivos da “grande arte”, acusados de elitismo e substituídos por critérios subjetivos, justificados ideologicamente pela nova classe dos críticos de arte ou pelas demandas mercadológicas das massas.

Guiado pelo reformismo pedagógico, o propósito da educação deixa de ser a busca pelo autoconhecimento e pelo entendimento do sentido das coisas, essenciais ao ordenamento da alma e da comunidade política, e passa a assumir, confusamente, um caráter ideológico de adestramento voltado à promoção pessoal, treinamento técnico, sociabilidade, socialização, certificação profissional e interesses dos governantes. Igualmente, os bons costumes aprendidos no exercício disciplinado das virtudes, sustentadas pelo senso religioso e pelo espírito de cavalheirismo, nutridos pela imaginação moral e pela educação liberal, são descartados como moda ultrapassada e dão lugar ao barbarismo proletário. O necessário equilíbrio político entre direitos e deveres, bem como a meritocracia, é substituído pela ideologia do democratismo, que transforma a comunidade de cidadãos num aglomerado massificado de indivíduos apáticos, preocupado, apenas, com as mesquinhas vantagens da barganha com o Estado, transformado num poder onipotente, controlado por políticos inescrupulosos e pela burocracia opressora, que passam a regular todos os aspectos da vida social.

Nossa geração é o retrato dos quatro primeiros versos do poema de T. S. Eliot: “Somos homens ocos / Somos homens empalhados / Uns nos outros apoiados / Com cabeças cheias de palha. Que tristeza!”. As mazelas de nossa época, criadas pela ilusão confortante oferecida pelo ópio das ideologias só pode ser confrontada e vencida pelos “remanescentes” que aprenderem a remir o tempo, redescobrindo a sabedoria perdida no conhecimento e na informação. Como ressaltou Russell Kirk, em A Era de T. S. Eliot, essa não é uma tarefa para homens ocos, que temem contemplar os olhos do Cristo ou da Beatriz de Dante Alighieri, pois esses são olhos recriminadores, “que exigem arrependimento e provação para a regeneração”. O filósofo Eliseo Vivas afirmou que um dos traços de decência humana, em nossa época, é envergonhar-se de ter nascido no século XX. A pilha de cadáveres ideológicos criados por diferentes regimes totalitários é a marca visível do pecado dos homens ocos. Nas palavras de Eric Voegelin, em Israel e a Revelação (Loyola, 2009), o primeiro dos cinco volumes de Ordem e História“a ideologia é a existência em rebelião contra Deus e o homem. É a violação do primeiro e do décimo mandamentos (…); é a nosos, a doença do espírito (…). A filosofia é o amor ao ser por meio do amor ao Ser divino como a fonte de sua ordem”.

Diante desse cenário aflitivo, não devemos perder a esperança, pois ainda é possível remir o tempo, queimando a palha ideológica colocada em nossas cabeças e irrigando os desertos de nossa terra desolada. O caminho a ser seguido não é fácil, exige disciplina e comprometimento. O exercício das virtudes, a vivência religiosa e a redescoberta da tradição, pela educação liberal e pela imaginação moral, são os meios disponíveis para executar tal tarefa. Como, há dois mil anos, exortou São Paulo: “Vede, pois, cuidadosamente como andais: não como tolos, mas como sábios, / remindo o tempo, porque os dias são maus. / Por isso não sejais insensatos, mas procurai conhecer a vontade do Senhor” (Ef 5, 15-17).

Em uma passagem do poema “The Dry Salvages”, de 1941, o terceiro dos Quatro Quartetos, T. S. Eliot fala da “interseção do atemporal / com o tempo”, que de acordo com Russell Kirk, em A Era de T. S. Eliot, significa que “nossa esperança não se encontra no momento presente, muito embora a ação correta no presente seja o meio para a imortalidade. Se nos faltar compreensão do passado pessoal e do passado histórico, o presente momento não tem sentido”. No poema Quarta-Feira de Cinzas, de 1930, Eliot afirma: “Os novos anos caminham, restaurando / Por uma nuvem luminosa de lágrimas, os anos, restaurando / Com novos versos a rima antiga, remindo / O tempo, remindo / A visão indecifrada do sonho mais excelso”. No epílogo do livro A Política da Prudência, que será lançado em português, ainda em 2013, pela É Realizações, Kirk exorta as novas gerações com as seguintes palavras: “Não precisareis ser ricos ou famosos para ‘remirdes o tempo’: o que precisais para realizar tal tarefa é unir a vossa imaginação moral à reta razão. Não é pela riqueza ou pela fama que sereis recompensados, provavelmente, mas por momentos eternos”. Nos versos de “Little Gidding”, de 1942, o último dos Quatro Quartetos, Eliot ensina que: “(…) a comunicação / Dos mortos se propaga, em línguas de fogo, para além da linguagem dos vivos”.

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