Por Olavo de Carvalho
Se 1968 ainda é chamado “O Ano Que Não Terminou”, é porque não terminou mesmo -- nem dá sinais de pretender fazê-lo tão cedo. Ao menos no Brasil é assim. Os trejeitos e cacoetes verbais que dominam o horizonte mental “dêfte paíf” ainda são em essência aqueles que então ecoavam pela rua Maria Antônia e pelos bares do Leblon, os dois pólos neuronais, Tico e Teco, entre os quais circulava o comércio local de idéias. Isso não quer dizer que o Brasil esteja preso no passado. Está é fora do tempo.
Na França, nossa principal fornecedora de gadgets intelectuais, 1968 não foi propriamente um capítulo da História, foi uma crise abrupta de esquecimento, quando o acesso cognitivo a milênios de tradição cultural se tornou inviável graças ao consumo conspícuo de dois poderosos estupefacientes. De um lado, veio a repentina substituição do ensino tradicional baseado em letras clássicas e ciências físicas pela nova cultura de sexo, drogas, rock'n roll e guevarismo, criada para atender a um público de adolescentes que a prosperidade da classe média no pós-guerra transformara em consumidores independentes e vorazes (o processo está relativamente bem documentado na obra apologética Linguistique et Culture Nouvelle , de Philippe Rivière e Laurent Danchin, Paris, Éditions Universitaires, 1971). De outro, as próprias instituições nominalmente encarregadas de conservar a inteligibilidade do passado foram incapacitadas para essa tarefa pela disseminação epidêmica da moda “desconstrucionista”.
Se a alfabetização consiste em construir pontes entre os sinais escritos e o mundo da experiência exterior e interior, é evidente que dinamitar essas pontes, fazendo da linguagem um universo auto-referente, não pode resultar em nenhuma elevação do nível de compreensão da cultura, e sim apenas numa forma superior de analfabetismo, praticamente irreversível por vir legitimada pelo aval da intelectualidade acadêmica, aliás a mais presunçosa e pedante que já existiu. Também é patente que, na impossibilidade de apelar ao testemunho da realidade experienciada, o único critério de julgamento que resta é precisamente a palavra daquela intelectualidade, investida assim, gramscianamente, da “autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.
Cortando a comunicação com o passado, 1968 destruiu o senso de continuidade histórica, de modo que todo o progresso alcançado desde então no mundo do pensamento – e ele foi considerável – se deu à margem da zona desconstrucionista, tornando-se incompreensível ou totalmente invisível aos que permanecem dentro dela. Esses adolescentes perpétuos continuam fechados numa redoma de atemporalidade postiça, separados da história e da atualidade, entregues aos prazeres mórbidos da auto-referência narcisista psicoticamente repetitiva, que os vai tornando cada vez mais estúpidos e incapazes à medida mesma em que reforça a sua devoção aos mitos culturais e políticos de um ano lendário transfigurado em caricatura grotesca da eternidade.
Foi assim que a França saiu da história intelectual do mundo, e o Brasil, que nunca havia entrado nessa história senão como apêndice da França, saiu junto com ela sem nem perceber. O reinado da inconsciência que desde então se instalou no país, eliminando toda possibilidade de vida intelectual genuína ao menos dentro das fronteiras do establishment , está na origem da assombrosa degradação moral e política da qual hoje todos se queixam mas que, no fim das contas, é o destino que escolheram.
Fonte: Olavo de Carvalho
Artigo escrito para o Jornal do Brasil, em 22/11/07
Notas:
Conhecido como "Maio de 68", o movimento promovido diretamente por estudantes franceses é tido por estudiosos e filósofos como o mais importante movimento revolucionário do século XX. Começou com greves de estudantes em universidade e escolas pelo país, e culminou numa gigantesca mobilização nacional, com milhões em greve e ocupações de fábricas em toda a França. Diz-se que dois terços dos trabalhadores cruzaram os braços. Os insurgentes eram esquerdistas, e levantaram-se contra os antigos valores sociais sobre educação e sexualidade.
"Desconstrução", é usado de maneira mais abrangente pelo autor do artigo acima, mas significa (em termos mais específicos) um crítica de pressupostos de alguns conceitos filosóficos. Elaborado pelo francês Jacques Derrida, na década de 60. A frase famosa de Derrida "A linguagem se cria e cria mundos" aponta para uma contingência dogmática do "ser" e do "significado". Assim, as leituras (especificamente as filosóficas), tornam-se leituras possíveis, mas não "corretas", em sentido último. Isto afetou também a Hermenêutica bíblica, uma vez que a exposição de textos religiosos dogmáticos partem, ao menos, de uma filosofia da religião antiga.
Pr. Artur Eduardo
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