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quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Psicanálise sob revista

A PSICANÁLISE, 70 ANOS DEPOIS DA MORTE DE FREUD

Sigmund Freud (1856-1939).
Sigmund Freud é um dos personagens mais citados do último século. Coleciona tanto títulos como críticas e discordâncias: enquanto uns o consideram o “descobridor do inconsciente” outros já o qualificaram como charlatão e embusteiro intelectual. Mas o célebre neurologista, que morreu em 23 de setembro de 1939, há exatos 70 anos, não foi o primeiro a voltar sua atenção para a atividade psíquica. No âmbito da filosofia, desde o Iluminismo já era de conhecimento geral a existência de uma esfera na qual se desenrolam processos psíquicos inconscientes que co-determinam o que pensamos e sentimos, assim como o que fazemos ou deixamos de fazer. Os românticos do início do século XIX chegaram mesmo a basear nesse conhecimento toda sua produção intelectual. Do ponto de vista científico, porém, o inconsciente era terra incógnita até que Freud começa-se a mapeá-lo.

Suas teorias foram instigadoras de polêmicas. Quando escreveu A sexualidade na etiologia das neuroses, em 1898, defendendo, pela primeira vez, a existência da sexualidade infantil, causou escândalo entre os médicos vienenses. Cerca de um ano antes, tinha se desiludido com as pacientes histéricas. Na famosa carta de 21 de setembro de 1897 ao amigo e interlocutor Wilhelm Fliess, o criador da psicanálise diz: “Não acredito mais na minha neurótica”, referindo-se a sua conclusão de que os relatos de sedução na infância, feitos pelas pacientes, não correspondiam ao que, efetivamente, tinha ocorridos em suas vidas.

Posteriormente, em A interpretação dos sonhos, de 1900, Freud já se detinha na questão sexual e suas formas inconscientes de expressão. Ao afirmar que a produção onírica é “a via régia que conduz aos conhecimentos do inconsciente”, apresentou um aspecto inovador para a compreensão da mente humana, enfocando a produção onírica como própria do sujeito – e não externa ele. Uma produção psíquica, aliás, repleta de desejos inconscientes, reveladora da sexualidade, dado que os sonhos permitiriam a realização de desejos recalcados.

Ainda de acordo com ele, se nos aprofundarmos na análise dos sonhos, por meio da associação livre, chegaremos a conteúdos latentes repletos de conotações eróticas, resquícios de desejos sexuais infantis. Porém, para que conteúdos reprimidos possam burlar a autocensura, ainda que parcialmente, surgem travestidos por dois tipos de símbolos universais (presentes em diferentes culturas e épocas) e individuais (que ganham sentido para quem sonha).

Mais de um século após a publicação dos primeiros textos freudianos muitos pensadores partiram de suas construções para propor outras formas de compreender o ser humano e seu funcionamento. Podem-se repudiar suas ideias ou comungar com elas, aceitá-las ou não, mas algo é certo: é impossível ficar indiferente. “Hoje sabemos que não se trata de provar que Freud tinha razão – mas a psicanálise e pesquisa cerebral não precisam se contradizer”, diz o neuropsicanalista Mark Solms.


Crítica à psicanálise

A psicanálise deve em parte a sua existência à literatura a qual, segundo Freud, é melhor fonte de formação para a clínica psicanalítica do que os estudos médicos. Por seu lado, Lacan, aberto ás novas correntes do seu tempo e para quem sólidos estudos de medecina e de psiquiatria se misturaram com a frequentação dos surrealistas, é recebido em 1964 para o seu seminário na Escola Normal Superior de Paris, deixando de ter como interlocutores maioritários apenas os seus colegas analistas para interpelar e se deixar interpelar pelos filósofos e homens de letras da então revista Tel Quel. Mais tarde, ao alargar a sua reflexão sobre a psicanálise no confronto com outras disciplinas, da antropologia à lógica, à matemática e à topologia, nunca deixa o domínio que, apesar de médico, foi a base da sua formação cultural inicial: a arte em geral e a literatura em especial.

Freud participa na revisão que se inicia na sua época da fronteira que as ciências positivas tinham estabelecido nos séculos anteriores entre o objectivo e o imaginário, entre o que elas julgam controlar e o resto. Michel de Certeau que o relembra defende que a “literatura é o discurso teórico dos processos históricos, o seu discurso lógico, a ficção que a torna pensável”. Ora, não participa a psicanálise por definição dessa lógica da historicidade?

Em 1895, Freud admira-se de que “as suas histórias de doentes se leiam como romances e que, de certo modo, não apresentem o caracter sério da ciência”. Constata que os métodos científicos utilisados em medecina não têm qualquer valor para o estudo da histeria enquanto que uma apresentação aprofundada dos processos psíquicos, seguindo a maneira dos poetas permite uma certa inteligência do desenrolar daquela patologia. Apela aos poetas e romancistas que conhecem tantas coisas que o nosso conhecimento escolar nem sonha e que precedem sempre o cientista. Nunca sairá desta via e o seu último texto, O Homem Moisés, será por ele designado como um romance. Uma ficção teórica.

Aquilo de que se trata é da forma e do conteúdo. Nos escritos freudianos é a ficção que, como o material recalcado, retorna no real do sério científico, não só porque ela é objecto de análise, mas porque lhe dá a forma. Com a psicanálise a maneira do romance torna-se escrita teórica. Repescando as relações que perseguem desde a Bíblia, a ligação do saber ao seu objecto, Freud trai a norma científica e reencontra o género literário que era, na Sagrada Escritura, o discurso teórico dessa relação.

Eis como começa a relação da psicanálise com a literatura. Por uma relação interna. É à literatura que Freud vai buscar o conteúdo e a forma da psicanálise. Ele lê a cura como um romance, ouve os lapsos, ironias, actos falhos e sonhos como um texto literário. Reciprocamente, a escrita da “ficção” analítica ensina a ler a literatura. Em Freud, há uma continuidade entre a maneira de ouvir um analisando, a maneira de ler uma obra literária e a sua maneira de escrever. A obra literária não pode, na crítica psicanalítica, reduzir-se a um modelo imposto por uma cientificidade. Por seu lado, a literatura ao fornecer os modelos à psicanálise, retira-a do campo médico, neurológico.

Esses modelos são fundamentalmente dois, a tragédia e a retórica. A tragédia oferece a Freud a estrutura teatral que ele aplicará à explicação da estruturação do psiquismo em três instâncias, o id, ego, o superego. Por outro lado Freud inicia o caminho de retorno do romance ao mito, mas pára antes que o mito retire o caracter histórico da narrativa. Situada entre o romance e o mito, a psicanálise conserva do primeiro o desenrolar narrativo e do segundo as estruturas explicativas.


Freud x Neurociência

Pouca gente sabe, mas antes de criar a psicanálise o próprio Freud passou anos de sua vida tentando entender o funcionamento da fisiologia do cérebro e como ele poderia desencadear os distúrbios mentais, igualzinho a qualquer neurocientista moderno. Entre 1882 e 1885, Freud trabalhou com pacientes que sofriam de lesão cerebral no Hospital Geral de Viena, já tendo pesquisado o sistema nervoso de lampréias e lagostins. Então por que boa parte dos neurocientistas atuais vive criticando suas idéias? "Não se trata de uma crítica a Freud, trata-se de reconhecer que os modelos da psicanálise não se encaixam com o que sabemos hoje sobre o funcionamento do cérebro", diz o neurocientista Ivan Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Sabe-se hoje que doenças como a esquizofrenia, que no passado era relacionada a um trauma psicológico, têm origem orgânica". Izquierdo diz que diversos estudos revelam que os pacientes esquizofrênicos têm um déficit anatômico na região do nosso cérebro que fica logo abaixo da testa, conhecida como córtex pré-frontal.

Esse déficit geraria uma falha na chamada memória de trabalho (a memória usada para nos orientar no aqui e agora), fazendo com que o esquizofrênico perceba a realidade como alucinação. "Para controlar os mecanismos que disparam essas alucinações, a medicação é fundamental", diz o neurocientista. "Utilizar o modelo freudiano para tentar curar alguns desses distúrbios pode ser tão inútil quanto tentar encontrar um erro num programa de computador quando a base do problema está na máquina". Máquina? Não seria uma simplificação comparar um homem a um computador, traçando uma linha clara entre um hardware, formado pelo cérebro e suas interações químicas, e um software, constituído por nossas emoções, pensamentos e experiências de vida? Izquierdo diz que é claro que a divisão não é tão simples e há uma série de interações entre as predisposições orgânicas e história de vida. "Se você tem uma tendência para a depressão, por exemplo, é óbvio que ela vai estar associada a algumas passagens de sua vida", diz Izquierdo. "Mas a predisposição já estava lá, enquanto outras pessoas, com experiências semelhantes, reagem de outra forma apenas por não terem a mesma tendência."

Ele diz que isso não significa que um evento como a perda de uma pessoa querida ou um trauma de guerra não possa causar um distúrbio numa pessoa normal. "É claro que pode", diz Izquierdo. Mas mesmo nesses casos, conhecidos como síndrome pós-trauma, ele diz que a psicanálise freudiana nem sempre é útil e às vezes pode até ter efeito negativo. "Trabalhar com a memória nesses casos pode despertar sensações terríveis que agravam o estado do paciente", diz. "É claro que é fundamental fazer algum tratamento psicológico, mas outras terapias não-freudianas podem ser mais indicadas". Apesar de reconhecer a importância do legado de Freud com a criação do tratamento pela fala - disseminado em quase todas as terapias -, Izquierdo diz que usar conceitos como o de complexo de Édipo para entender a psique é quase tão gratuito como era, no tempo de Jesus, dizer que um epilético estava possuído pelo demônio. "A psicanálise está cheia de metáforas que podem até ser úteis para descrever algumas condições humanas", diz Izquierdo. "Mas útil não quer dizer verdadeiro." Então como explicar o depoimento de milhares de pessoas que atestam que a análise freudiana mudou suas vidas para melhor?

O neurocientista Renato Sabattini, da Unicamp, diz ter a resposta para essa pergunta: "A psicanálise funciona, sim. Mas não pela validade de suas teorias, e sim pelo efeito placebo que a fala tem no tratamento de distúrbios da mente". Sabattini diz que em casos de depressão e ansiedade esse efeito pode ter resultados favoráveis de até 40%. Já em casos em que a origem orgânica seria mais evidente, como na esquizofrenia, os resultados seriam menores, cerca de 20%. "Não se trata de negar o óbvio benefício que ouvir o paciente pode trazer", diz Sabattini. "Trata-se de reconhecer que não há nenhuma base científica que sustente a psicanálise". Como exemplo, ele cita o papel que Freud deu aos sonhos em seu livro A Interpretação dos Sonhos, um marco na história da psicanálise, escrito em 1900. Para Freud, o conteúdo do sonho, por mais absurdo que possa parecer ao senso comum, estaria repleto de desejos inconscientes que poderiam ser identificados pela interpretação do analista. "Se você sonhasse com alguns objetos fálicos, isso poderia significar desejos sexuais implícitos, o que era típico da sociedade em que ele viveu", diz Sabattini. "Hoje, se um sujeito passa muito tempo sem um contato sexual, ele não sonha com objetos que lembram órgãos sexuais. Ele sonha com sexo explícito". Sabattini diz que a neurociência pode mostrar apenas que o sonho funciona como uma espécie de organizador do cérebro e diz que animais que são privados de entrar no estado de sono REM, responsável pelo sonho, passam a ter inúmeros problemas, como déficit de aprendizado.

"É claro que, se você procurar, pode encontrar no seu sonho padrões e significados para o que quiser", diz Sabattini. "Da mesma forma que você pode dar inúmeros significados a um quadro abstrato numa exposição de arte moderna." Mas isso é ciência? "Não", responde Adolf Grünbaum, considerado um dos mais ferrenhos críticos da psicanálise no mundo. Professor de Psiquiatria e chefe do departamento de Filosofia da Ciência da Universidade de Pittsburgh, Estados Unidos, ele espinafra a validade do método inventado por Freud em seus livros The Foundations of Psychoanalysis: A Philosophical Critique (Os Fundamentos da Psicanálise: Uma Crítica Filosófica, inédito no Brasil) e Validation in the Clinical Theory of Psychoanalysis (Validade na Teoria Clínica da Psicanálise, também inédito aqui). "Está claro que ela já está morrendo em países como a Alemanha, a Suíça e os Estados Unidos", diz Grünbaum. "Talvez ela tenha uma sobrevida maior na França, Itália e Argentina, mas basta observar o decrescente número de psiquiatras que estudam para ser psicanalistas para constatar sua decadência." Ele diz que essa tendência deve se manter graças a três fatores.

O primeiro seria a falta de evidências de que o tratamento psicanalítico tem uma boa relação custo/benefício - para ele, há tratamentos mais rápidos e baratos, e ninguém conseguiu provar que a psicanálise é mais eficiente do que esses tratamentos. A segunda razão seria a ascensão dos novos medicamentos. Aliadas a psicoterapias de curto prazo, as novas drogas estariam tomando o lugar da psicanálise. E o terceiro e mais controverso fator seria a falta de critérios para o credenciamento de psicanalistas, ao menos nos Estados Unidos. "Há todo um sistema corrompido e arbitrário, já que não existem pré-requisitos sólidos para alguém ser considerado um psicanalista", diz o psiquiatra. Para Grünbaum, um dos traços marcantes que comprovaria a falta de fundamento científico da psicanálise estaria em sua quase infinita capacidade para rebater qualquer dado que contradiga suas teorias. Costuma-se ilustrar esse traço com a história de um analista que, baseado nas palavras de um adolescente, interpreta que o garoto apresenta uma clássica síndrome de Édipo: quer matar seu pai e copular com sua mãe. Se o rapaz concordar com a interpretação, ótimo. Se a rejeitar, sua negação é uma forte prova de que ele está reprimindo seus impulsos. Essa estratégia é conhecida pelos detratores da psicanálise como "cara eu ganho, coroa você perde", e teria sido usada por Freud e seus seguidores. "Não é à toa que nas principais universidades americanas as idéias de Freud estão saindo dos departamentos de medicina e psicologia e sobrevivem apenas nos cursos de literatura".

Será mesmo? Pelo menos no Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Iowa, há um neurocientista bem mais cauteloso em suas críticas à psicanálise. Conhecido no Brasil por seus livros O Erro de Descartes e O Mistério da Consciência, o neurologista António Damásio diz que, mesmo reconhecendo as limitações da psicanálise, é preciso admitir que Freud estava correto em vários aspectos sobre o cérebro. "O problema central da psicanálise não está em Freud", diz Damásio. "Está num imenso número de psicanalistas que se fecharam ao mundo exterior, apegando-se a teorias como se fossem dogmas religiosos."

Fontes: Mente & Cérebro, FHCS, Superinteressante

NOTA: Não sei se foi uma boa ideia da "Super" colocar Antônio Damásio quase como "um dos únicos defensores de algum renome da psicanálise"... ele é conhecido por sua ferrenha veia antirreligiosa e, talvez querendo salvaguardar o que resta de científico na teoria psicanalítica clássica, Damásio tenha relegado a produção "científica" psicanalítica recente àquilo que ele condena: religiosidade freudiana.

Em Cristo Jesus,
Pr. Artur Eduardo

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