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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Quase mil anos de controvérisas sobre o "Argumento Ontológico" da existência de Deus.

O ARGUMENTO ONTOLÓGICO DE ANSELMO DE CANTUÁRIA



Por Vitor Grando
Adaptado por Artur Eduardo

Provas da existência de Deus são, para mim, um assunto fascinante devido a seu teor altamente especulativo e por dar ampla margem à criatividade da razão humana. Além de mexer com algo que é inerente a todo ser humano – Deus. Há basicamente dois tipos de argumentos para existência de Deus: (1) argumentos a priori e (2) argumentos a posteriori. Argumentos a posteriori são argumentos que partem da experiência para inferir a existência de Deus; já os argumentos a priori independem da experiência, partindo somente de conceitos da razão humana. O maior exemplo de argumento a priori é o Argumento Ontológico que analisaremos aqui. O Argumento Ontológico é, certamente, um dos mais fascinantes destes argumentos. É altamente controverso e especulativo. Difícil de ser derrubado, mas, curiosamente, “é difícil de eliminar a desconfiança de que nela haja algo de fundamentalmente errado”¹. Seu poder de fascínio é tanto que raros filósofos, desde Anselmo, o ignoraram. Muitos para defendê-lo, como Descartes, Espinosa, Leibniz, e, mais recentemente, Plantinga, Norman Malcolm e Maydole; seja para refutá-lo, como Kant; ou, muitas das vezes, ridicularizá-lo como fez Schopenhauer taxando-o de “uma piada fascinante” - posição, diga-se de passagem, partilhada por boa parte dos filósofos que o analisaram. Procedamos, então, à análise do argumento para ver o que de tão intrigante há neste pensamento de Anselmo de Cantuária.

Anselmo havia recentemente terminado a obra Monologium, onde ele discute a existência de Deus por meio de argumentos cosmológicos e morais. Porém, Anselmo não ficara satisfeito com a complexidade de sua argumentação e continuava a buscar um único e suficiente argumento capaz de estabelecer racionalmente a existência de Deus e de Seus atributos. Nas palavras do próprio:

"Mal acabei de escrever um opúsculo [o Monológio], acendendo aos pedidos de alguns irmãos, o qual servisse como exemplo de meditação sobre os mistérios da fé para um homem que busca, em silêncio, descobrir, através da razão, o que ignora, e dei-me conta de que essa obra era difícil de ser entendida devido ao entrelaçamento das muitas argumentações. Então comecei a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um único argumento que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que ele é o bem supremo, não necessitando de coisa alguma, quando, ao contrário, todos os outros seres precisam dele para existirem e serem bons. Um argumento suficiente, em suma, para oferecer provas adequadas sobre aquilo que cremos acerca da substância divina. Ao dirigir com zelo e freqüência o pensamento para esse fim, às vezes parecia-me ter alcançado o objetivo; outras, tinha a impressão que se me embaciava a mente. Por fim, desanimado, procurei deixar de lado a tarefa, julgando impossível conseguir o que buscava. Mas, por mais que me esforçasse por afugentar o propósito, porque me afastava de outras ocupações profícuas, ele voltava a mim com insistência crescente. No entanto, um dia, quando já estava cansado de resistir a essa perseguição inoportuna, justamente no calor do conflito dos meus pensamentos, eis que se me apresenta a idéia que já desesperara de encontrar. Acolhi-a com tanto entusiasmo quanto empenho colocara em rechaçá-la".
Vemos aqui que após a redação do Monologium, Anselmo ficou insatisfeito com sua complexa argumentação e dificuldade de que seu pensamento fosse acompanhado. Ele, então, resolve escrever o seu argumento e temos o que se segue:
"Então, ó Senhor, tu que nos concedeste a razão em defesa da fé, faze com que eu conheça, até quanto me é possível, que tu existes assim como acreditamos, e que és aquilo que acreditamos. Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não existe porque “o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe”? [Sl 13,1] Porém, o insipiente, quando eu digo: “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, ouve o que digo e o compreende. Ora, aquilo que ele compreende se encontra em sua inteligência, ainda que possa não compreender que existe realmente. Na verdade, ter a idéia de um objeto qualquer na inteligência, e compreender que existe realmente, são coisas
distintas. Um pintor, por exemplo, ao imaginar a obra que vai fazer, sem dúvida, a possui em sua inteligência; porém, nada compreende da existência real da mesma, porque ainda não a executou. Quando, ao contrário, a tiver pintado, não a possuirá apenas na mente, mas também lhe compreenderá a existência, porque já a executou. O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência. Mas “o ser do qual não é possível pensar nada maior” não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, “o ser do qual não é possível pensar nada maior” existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, “o ser do qual não se pode pensar nada maior” existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade".
Assim, para Anselmo, o próprio conceito de Deus de “o ser sobre o qual nada maior pode ser pensado” implica logicamente a Sua existência, visto que, se não existisse, poderia-se pensar um ser ainda maior que “o ser sobre o qual nada maior pode ser pensado”. Logo, tal ser existe no pensamento e, por conseguinte, na realidade. Anselmo conclui, portanto, que negar a existência de Deus é, como colocado no Salmo 13.1, tolice, pois não é sequer possível pensar sua inexistência. O tolo só nega algo tão evidente à razão humana justamente por ser “insensato e carente de raciocínio.

OBJEÇÕES PROPOSTAS

Gaunilo e sua Ilha Perdida:

Uma das mais populares estratégias dos detratores do Argumento Ontológico é a paródia. Gaunilo, um monge contemporâneo de Anselmo, escreveu uma livro intitulado “Em Defesa do Tolo” ou "Em Favor de Um Insipiente" onde parodiava o argumento de Anselmo substituindo Deus pela “Ilha Perdida”. O intuito de Gaunilo não era demonstrar a falha do argumento, mas sim que ao aceitarmos a lógica do argumento poderíamos inferir uma variedade enorme de seres que sabemos que não existem. A ilha perdida é a ilha da qual nenhuma maior pode ser concebida, portanto, tal ilha tem que existir necessariamente, já que se não existisse não seria a ilha mais perfeita concebível.

Aparentemente, a mesma lógica do Argumento Ontológico é usada por Gaunilo para provar a existência da “Ilha Perdida”. Isso nos deixa com apenas duas opções: (1) aceitarmos a existência de toda variedade de seres “Mais Perfeitos” que se possa conceber ou (2) negarmos a validade da lógica de Anselmo e, com ela, a conclusão sobre a existência de Deus. Tendo em vista que sabemos que a tal Ilha Perdida não existe, conclui-se que, da mesma forma, a existência de Deus não pode ser inferida a partir da lógica de Anselmo.

A Resposta de Alvin Plantinga: A Confusão Entre a Propriedade de Ilhas e as Propriedades de Deus

Alvin Plantinga, um dos responsáveis pela reintrodução do Argumento Ontológico nos debates filosóficos nas últimas décadas, responde à objeção de Gaunilo da seguinte maneira. Plantinga diz que a ideia de Deus difere das noções supostamente paralelas e tradicionalmente veiculadas pelos detratores do argumento. Por uma razão, as propriedades que determinam a excelência máxima de Deus possuem valores máximos intrínsecos, enquanto as propriedades formadoras de excelência de coisas como ilhas não as possuem.

Por exemplo, a onisciência é a propriedade de conhecer apenas e tão somente todas as verdades. É impossível conhecer mais verdades que isso. Por contraste, como no caso das ilhas, sempre poderá haver mais palmeiras ou dançarinas nativas – tais coisas não têm um valor máximo intrínseco! Portanto, não pode haver uma maior ou mais perfeita ilha concebível. Sempre se poderá conceber uma Ilha com uma ou duas palmeiras a mais. Além do mais, não está muito claro que existam propriedades formadoras de excelência objetivas de coisas como ilhas, já que alguém pode preferir uma ilha deserta, enquanto outra pessoa prefere uma ilha repleta dos mais luxuosos hotéis.

A ideia de uma Ilha Perida é um conceito vazio. Não é concebível, assim como não é concebível um número natural máximo, pois sempre se poderá conceber um número ainda maior. Tenta pensar no maior número natural possível. Seria 1 seguido de um bilhão de zeros vezes o mesmo número elevado a quadragésima potência? Não, ainda seria possível concebermos um número maior, portanto, assim como números é inconcebível conceber coisas tais como Ilhas num grau de perfeição máximo. Veja este exemplo do filósofo ateu William Rowe:

"Uma dificuldade em aplicar o raciocínio de Anselmo à ilha de Gaunilo é que devemos aceitar a premissa de que tal ilha é uma coisa possível. Mas isso parece exigir de nós que creiamos que uma coisa finita e limitada – como uma ilha – pode ter perfeições ilimitadas. Não parece ser possível tal coisa. Tente imaginar, por exemplo, um jogador de futebol do qual nenhuma maior é concebível. Quão rápido ele deveria correr? Quantos gols deveria fazer por jogo? Quão rápido deveria chutar a bola? Poderia ele cair ou sofrer um pênalti? Apesar de a frase, “o jogador de futebol do qual nenhum maior é concebível”, parecer ter sentido, assim que tentamos pegar a ideia de como tal ser seria nós descobrimos que não conseguimos formar nenhuma ideia coerente. Pois nós é requerido que pensemos em algo limitado – um jogador de futebol ou uma ilha – e, então, pensar nisso como possuindo perfeições ilimitadas e infinitas".

Assim, portanto, parece-nos que a objeção de Gaunilo não resiste a um escrutínio mais acurado e, então, o Argumento Ontológico permanece de pé. Vejamos, então, a próxima objeção.

Kant: existência não é um predicado

A crítica mais influente e devastadora do argumento ontológico foi a de Immanuel Kant. Kant pensava que pelo fato do argumento ontológico se apoiar no juízo de que um Deus que existe é maior do que um que não existe, ele se apoiava numa confusão.

De acordo com Kant, a existência não é um predicado, não é uma propriedade que algo pode possuir ou não. Quando dizemos que Deus existe, não estamos dizendo que há um Deus e que ele possui a propriedade da existência. Se fosse esse o caso, quando disséssemos que Deus não existe estaríamos dizendo que há um Deus e que lhe falta a propriedade da existência, i.e, estaríamos ao mesmo tempo afirmando e negando a existência de Deus. Ao contrário, sugere Kant, dizer que algo existe é dizer que o conceito de tal coisa é exemplificado no mundo. Existência, portanto, não é questão de algo possuindo uma propriedade, existência, mas um conceito correspondente a algo no mundo.

Para ficar mais claro, suponha que déssemos uma completa descrição de um objeto, seu tamanho, peso, cor, etc... Se adicionármos, então, que esse objeto existe, ao fazermos isso não adicionamos nada ao conceito do objeto. O objeto é o mesmo existindo ou não; mesmo tamanho, cor e peso. O fato de que um objeto existe, de que ele é exemplificado no mundo, não muda nada sobre seu conceito. Afirmar que o objeto existe é dizer algo sobre o mundo, dizer que ele contém algo que se encaixa no conceito descrito; não é dizer nada sobre o objeto em si.

Se Kant estiver certo em sua visão de que existência não é uma propriedade, então é impossível comparar um Deus que existe com um Deus que não existe. Na visão de Kant um Deus que existe e um Deus que não existe são qualitativamente idênticos. Um Deus que existe é onipotente, onisciente, onipresente, etc. Um Deus que não existe é onipotente, onisciente, onipresente, etc. Ambos são iguais. Se isso estiver certo, então a alegação de Anselmo de que um Deus existente é maior do que um não-existente é falsa – nenhum é maior do que o outro – neste caso o argumento ontológico falha.

Norman Malcolm: existência necessária

Norman Malcolm encontrou uma outra versão do Argumento Ontológico no terceiro capítulo do Proslogium de Sto. Anselmo. Uma versão que, pelo que pareça, ainda não havia sido percebida. Nessa versão Sto. Anselmo identifica Deus como "o ser que não pode ser pensado como não existente", i.e, a existência a que se refere Sto. Anselmo é existência necessária. Um ser que existe necessariamente é um ser cuja inexistência implica uma contradição lógica. Ora, um ser que cuja inexistência implica uma contradição lógica é maior do que um ser cuja inexistência não implica uma contradição lógica. Assim, a lógica de Sto. Anselmo parece continuar válida, resistindo ao violento ataque de Immanuel Kant

Conclusão

Poderá a lógica de Sto. Anselmo ser derrubada? As defesas contra as objeções de Gaunilo e Kant são válidas? Penso que não. Não parece haver maneira de contornar a lógica de Sto. Anselmo, pelo menos não até o momento. Haverá alguém a ser persuadido pelo argumento? É difícil, pois o argumento parece sempre deixar o alerta de que algo, em algum lugar, está errado.

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