Embora ostente como título Lições de Filosofia Primeira, o recém-lançado livro do filósofo paulista José Arthur Giannotti não é apenas uma introdução ao pensamento no sentido convencional do termo, mas a obra de quem se impôs uma tarefa de demolir ideias feitas num mundo em que a filosofia já começa a ser confundida com negócio. O lançamento do livro de Giannotti coincide com um movimento convergente de editoras - grandes e pequenas - em busca de um novo modo de publicar filosofia no Brasil, deixando de lado livros de consumo fácil para abarcar obras densas. Dois exemplos do investimento pesado das editoras na área são as coleções das obras completas de Aristóteles - 75 livros que a WMF/Martins Fontes começa a publicar em maio - e a de René Girard, o mais ambicioso projeto da É Realizações, que comprou os direitos e está traduzindo 60 títulos do filósofo francês. Girard, autor da teoria do desejo mimético como forma contagiosa que leva à violência, ganha cada vez mais adeptos num território minado de pensadores cooptados - e corrompidos - pelo poder político.
Um deles, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), ameaça a supremacia de Nietzsche na lista dos best-sellers de filosofia - o criador de Zaratustra ainda lidera o ranking, segundo editores consultados pelo Sabático. Nos últimos tempos, Heidegger tem recebido tanta atenção das editoras que a Academia Brasileira de Filosofia decidiu promover um seminário sobre ele em abril, antes de encaminhar ao governo federal sugestão de projeto de lei que obrigue suas obras publicadas no País a estampar na capa a seguinte advertência: "Este livro tem conteúdo nazista". O presidente da Academia, o professor carioca de Filosofia João Ricardo Moderno, e Giannotti fazem a mesma pergunta: como um pensador do porte de Heidegger pôde se associar ao nazismo? Giannotti vai dar sua resposta no livro que prepara como segundo volume da série iniciada com Lições de Filosofia Primeira. A obra tem o sintético título de Contraponto: Heidegger/Wittgenstein.
O filósofo Peter Sloterdijk, estrela absoluta do catálogo da Estação Liberdade, que publica seus livros no Brasil, já se manifestou há alguns anos a respeito de Heidegger no polêmico Regras Para o Parque Humano. Nele, o alemão denuncia a herança nietzschiana e heideggeriana do pastoreio e domesticação dos homens com possíveis resultados catastróficos em nossa era antropotecnológica de reforma genética. Seu mais recente manifesto chama-se Ira e Tempo e está no prelo. Nele, Sloterdijk trata da ira como forma de energia psicopolítica capaz de promover a autoafirmação humana num mundo polarizado entre fundamentalistas e liberais. "Todos os seus livros venderam muito bem", garante o diretor editorial Angel Bojadsen, prometendo para breve o primeiro volume da trilogia Esferas, opus magnum de Sloterdijk que estuda a nova experiência do espaço no interior das macroesferas sociais. O filósofo alemão, professor em Karlshue, já ameaça o "espaço" dos pensadores franceses, revela Bojadsen, atestando que o interesse pelo desconstrucionista Derrida diminuiu consideravelmente nos últimos meses.
"Hoje em dia vejo mais historiadores de filosofia do que propriamente filósofos", comenta Giannotti, acrescentando ser a crítica à sociedade contemporânea feita pelos pensadores, de modo geral, "abstrata e pessimista", tendendo a imputar a culpa ao capital por tudo o que há de errado no mundo. Se a democratização do acesso à filosofia é um fato - como prova a profusão de novos títulos nas estantes -, por outro lado, segundo o filósofo, há uma tendência a "dissociar a prática filosófica das grandes questões que hoje nos atingem". Nietzsche seduz, segundo ele, não só porque escrevia bem como pela ilusão da ideia de potência que dá ao leitor (Vontade de Potência, aliás, acaba de ganhar edição da Vozes). "Nietzsche não é um filósofo da pacificação", diz Giannotti. "Ele pensa como um martelo", conclui, não poupando seguidores como Heidegger, leitura perigosa para quem ignora que seu discurso nazista aparece travestido na forma visceral de seu transe filosófico.
"Insisto na advertência do selo nas capas, denunciando o conteúdo da filosofia de Heidegger, porque propaganda nazista é crime no Brasil", justifica-se João Ricardo Moderno. A exemplo de outros filósofos europeus, ele lembra a simpatia de Heidegger pela SA de Röhm e as organizações estudantis que ela controlava. A filosofia dele, argumenta Moderno, é ainda mais perigosa por ter apoiado Hitler - Heidegger convocou o povo alemão às urnas para voltar no Führer, em 1933 - e ter sobrevivido à queda do Terceiro Reich, influenciando neonazistas e simpatizantes de regimes totalitários.
"As editoras, naturalmente, melhoraram muito o nível de suas traduções e o mercado se profissionalizou, mas a publicação de Heidegger obedece a uma lógica comercial, enquanto há obras clássicas, fundamentais, que são esquecidas por vender mal", observa Moderno. O fundador da Editora É, Edson Manoel de Oliveira Filho, pretende dar sua contribuição, publicando brevemente a coleção Grandes Comentadores de Platão e Aristóteles, organizada pelo professor Carlos Nougué, seis volumes que vão de um comentário à metafísica aristotélica por Alexandre de Afrodísias aos estudos de Santo Tomás de Aquino sobre a obra do filósofo - complementando, de forma indireta, a coleção de obras completas de Aristóteles, a ser publicada pela WMF/Martins Fontes. Esta começa com Os Econômicos em maio e a Retórica no segundo semestre. Segundo o editor Alexandre Martins Fontes, que publicou os cursos de Foucault e Barthes (seus maiores êxitos comerciais), 15% do seu catálogo (de 2 mil títulos) são dedicados à filosofia.
A Editora É mantém ainda uma coleção de títulos considerados de difícil comercialização, mas de fundamental importância para o entendimento do pensamento contemporâneo, a Filosofia Atual. Nela foram publicados 15 títulos, todos eles acompanhados de um DVD explicativo sobre a obra de filósofos como o canadense Bernard Lonergan (1904-1984), o espanhol Xavier Zubiri (1898-1983), o metafísico francês Louis Lavelle (1883-1951) e o alemão Eric Voegelin (1901-1985). "Temos apostado nos estudantes de pós-graduação, mas não me preocupo muito com as vendas quando gosto de um filósofo", diz o editor da É, que vai dobrar até 2012 o número de livros de seu catálogo atual (130 títulos), apostando no boom editorial de livros filosóficos no Brasil. Outra estratégia da editora é a publicação de obras completas, como a do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva e do francês René Girard, sobre quem organiza em setembro um seminário internacional, lançando nada menos do que 22 títulos de e sobre o filósofo.
Outra editora que aposta em filósofos pouco divulgados é a carioca Contraponto, a exemplo da Perspectiva, Zahar e as universitárias. Ela tem 120 títulos no catálogo e vai ampliar a oferta das obras do alemão Hans Jonas (1903-1993), do inglês John Burnett (1863-1926) e do austríaco (naturalizado inglês) Karl Popper (1902-1994), pioneiro racionalista que tematizou a ciência. O editor César Benjamin garante que Popper é o carro-chefe da Contraponto, apostando num catálogo permanente de long-sellers, como a WMF/ Martins Fontes, ou seja, títulos essenciais que vendem a longo prazo - e garantem o prestígio das editoras.
Fonte: Estadão
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