NENHUM PONTO DE
CONTATO?
UMA CRÍTICA À
APOLOGÉTICA PRESSUPOSICIONALISTA
Por
Alister McGrath, do livro "Bridge-Bulding", ou "Apologética
Cristã no Século XXI".
Adaptado
por Artur Eduardo
No final da década de 1920, a igreja presbiteriana
dos EUA foi sacudida por uma série de controvérsias entre conservadores e
liberais. Por fim, tais controvérsias levaram a uma das mais importantes
mudanças na educação religiosa de nível superior: a saída de quatro membros do
Seminário Teológico de Princeton que se uniram para formar o Seminário de
Westminster, na Filadélfia. Convencidos de que Pricenton havia abandonado seu
compromisso com a "velha teologia", J. Grescham Machen e três
colegas de Princeton (entre eles,
Connelius Van Til) tornaram-se o núcleo do corpo docente do novo seminário
comprometido com a preservação da tradição que Princeton parecia ter
abandonado. Contudo, paradoxalmente, o tratamento apologético que vei a ser
identificado com o novo Seminário guarda pouca relação com a "velha escola
de Princeton" de apologética, que dominou o pensamento reformado americano
até a década de 1920. O sistema apologético de Van Til, mas conhecido pelo nome
de "pressuposicionalismo", representa um afastamento consciente e
deliberado da posição de autores como Benjamim B. Warfield, em direção a uma
posição mais semelhante àquela associada a autores reformados holandeses
posteriores, como Abraham Kuyper.
O pressuposicionalismo tem como um
de seus pressupostos centrais (no nosso caso, este será o pressuposto por
excelência), a crítica da "autonomia". Para Van Til, o ponto de
partida lógico da apologética deve ser a idéia bíblica de Deus. Contudo, a
apologética evangélica clássica, conforme encontrado nos escritos de Calvino e
de Edwards, parte de um raciocínio que não toma como pressuposto a existência
de Deus, pautando-se pela suposição pedagógica de que se deve começar por
aquilo que se conhece (a natureza ou a experiência humana) e caminhar na
direção do que não se conhece (a existência de Deus). Parafraseando a expressão
encontrada no Cur Deus homo, de Anselmo de Canterbury, a apologética
tradicional principia como remoto Deo, "longe de Deus", e tem como
objetivo mostrar que Deus representa a explicação mais sensata para o mundo,
tal como ele se nos apresenta. Van Til expressa da seguinte forma essa
estratégia, conforme se depreende dos cânones da teologia da "velha
Princeton":
De acordo com
esse método, supõe-se que o homem natural seria capaz de:
a. formular uma
teologia natural segundo a qual o teísm seria provavelmente mais verdadeiro do
que quaisquer outras teorias da realidade e,
b. mostrar que o
cristianismo é provavelmente mais verdadeiro do que qualquer outra teoria
acerca do pecado e da redenção.(Van Til, Defense of the Faith, pg. 260).
Van Til argumenta que esse enfoque
só pode resultar na criação de Deus pelos seres humanos à imagem deles, e
recorrendo a critérios humanos de racionalidade e evidência, em ve de critérios
divinamente autorizados. Os que praticam essa teologia seriam culpados de
idolatria, a criação e adoração de um Deus à sua própria imagem.
Por quê? A resposta de Van Til é de
certo modo complexa e, não raro, escudada em linguagem obscura. A estrutura
básica de seu argumento parece ser a seguinte: não podemos começar a pensar
em Deus sem antes pressupormos sua existência. |Se assim o fizermos,
estaremos, na verdade, nos comprometendo com uma cosmovisão não-bíblica da qual
Deus se acha excluído, ou que fatalmente o conceberá em termos puramente
humanos. Nosso raciocínio se desenvolve com base em um ponto de partida
autônomo, e é esse ponto de partida, na verdade, que predetermina nossas
conclusões. O único ponto de partida válido é o que pressupõe a existência de
Deus, não qualquer idéia de Deus, mas uma visão de Deus explicitamente expressa
nas Escrituras. A apologética deve, portanto, no entendimento de Van Til,
começar "de cima" (com Deus), e não "de baixo" (com as
experiências e eventos do cotidiano). Van Til diz que não é possível dialogar
com indivíduos estranhos à fé cristã. Não há terreno comum. Se aceitarmos o
pressuposto de Deus, com tudo o que esse pressuposto implica, isso significa
que já somos cristãos; se não aceitarmos, não poderemos sequer começar a
entender os méritos do argumento cristão. Somente se o não-cristão se entregar
totalmente ao pressuposto da existência de Deus, poderá compreender os méritos
do argumento cristão.
Cornelius Van Til ministrando uma aula de teologia no Westminster Theological Seminary.
Contudo, Van Til se vê diante de
inúmeros textos, das Escrituras e da tradição reformada, segundo os quais seres
humanos pecaminosos têm, sim, acesso ao conhecimento de Deus com base na
criação, isto é, ao conhecimento a partir "de baixo". O autor
reconhece este ponto:
O apóstolo Paulo
fala do homem natural como alguém que efetivamente possui o conhecimento de
Deus (Rm. 1:19-21). A enormidade do pecado dele repousa precisamente no fato de
que "tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus". Ninguém
pode deixar de conhecer Deus. Trata-se de algo que se acha indelevelmente
inscrito na consciência que o homem tem de tudo o que o cerca. Portanto, o
homem deve, conforme diz Calvino,
reconhecer Deus. Não há desculpa para ele se não fizer. O motivo de seu
fracasso em reconhecer a existência de Deus encontra-se exclusivamente nele
mesmo. (Ibid., pg. 92).
Eis aí uma síntese admirável da situação.
Para onde, porém, Van Til nos leva então? Diz o autor que "todos os homens, em decorrência do pecado
que trazem dentro de si, sempre e em todos os seus relacionamentos, buscam
"suprimir" esse conhecimento de Deus. O homem natural sempre joga
água em uma fogueira que não é capaz de apagar. Ele se rendeu à tentação de
Satanás, tornando-se seu escravo". (Ibid., pg. 92).
É essa idéia de supressão deliberada
e sistemática de um conhecimento natural de Deus que requer uma análise
crítica. A teologia defendida por essa exposição é excepcionalmente vulnerável;
suas implicações apologéticas são custosas e desastrosas. Não há diálogo nenhum
com o mundo. E há ainda uma incoerência curiosa no enfoque de Van Til. Embora
concorde com que todos têm acesso ao conhecimento de Deus, o autor insiste em
que todos (aparentemente sem exceção) suprimem esse conhecimento. Contudo, se
existe efetivamente um conhecimento real de Deus fora da comunidade cristã,
ainda que suprimido, o apologista tem a oportunidade de desvelar esse
conhecimento e elevá-lo ao nível da consciência articulada. Van Til parece a
propriedade apologética desse enfoque, acreditando, ao que tudo indica, que ele
representa uma capitulação da parte dos apologistas aos pressupostos de uma
platéia agnóstica, mas não é o caso. O apologista está simplesmente buscando um
posicionamento melhor, ou reculer pour
mieux sauter (recuar para melhor sautar). Aqueles que
não suprimiram o conhecimento de Deus podem, mediante o uso criterioso de um
arsenal de técnicas apologéticas, trazer à tona a lembrança desse conhecimento
reprimido de Deus.
Van Til argumenta que o conhecimento
natural de Deus, decorrente da autonomia humana, leva à idolatria. Contudo,
reformadores do século XVI, como Lutero e Calvino, estavam perfeitamente
cientes desse perigos. Calvino enfatiza que o conhecimento natural de Deus
descamba facilmente para a idolatria. Tal conhecimento da divindade é
inadequado; ele precisa ser suplementado pela revelação. Contudo, se
compreendido corretamente, o conhecimento natural de Deus é o ponto de partida,
e nada mais, para a riqueza da auto-revelação divina. O erro em questão não
consiste no uso do conhecimento
natural de Deus, e sim no uso impróprio de
tal conhecimento. Se o ponto de partida (conhecimento natural de Deus criador)
se confunde com o ponto final (conhecimento revelado de Deus redentor), haverá
uma séria distorção do tipo temido por Van Til. Contudo, conforme destaca
Calvino, não é imprescindível que seja assim. Cabe ao apologista desvelar, isto
é, elevar à consciência explícita e usar da melhor maneira possível o
"conhecimento suprimido", permitindo que ele nos conduza a coisas
maiores e melhores.
(...) Os perigos intrínsecos ao
abuso do conhecimento natural de Deus são bem conhecidos dos apologistas
clássicos. Van Til, a exemplo de Barth, lembra-nos da necessidade de sermos
responsáveis e bíblicos em nosso apelo apologético à natureza e à experiência
humana; todavia, nenhum desses autores conseguiu arruinar os fundamentos que
conferem justificativa teológica a um apelo limitado e consciente à natureza.
A posição de Van Til, portanto, é
seriamente vulnerável, seja do ponto de vista histórica, seja do teológico. Já
nos detivemos sobre a importância desses pontos e manifestamos nossa
preocupação no tocante ao enfoque defendido por Van Til. A essência de cada uma
das críticas pode ser sintetizada da seguinte forma: teologicamente, o pressuposicionalismo de Van Tilpeca por não
integrar as doutrinas cristãs da criação e da redenção. Do ponto de vista histórico, a oposição do autor destoa da
tradição reformada como um todo.
Van Til diz representar a tradição
reformada em toda a sua plenitude. Mas, será que Calvino, a quem se pode
considerar fons et origo (fonte e origem) dessa escola específica,
endossaria de fato a posição desse autor? Certamente que não! Não seria B. B.
Warfield, cuja desconfiança em relação a Abraham Kuyper se acha bem
documentada, um representante mais fiel dessa escola? É difícil entender como
Van Til pôde incluir tanto Calvino entre os representantes do
pressuposicionalismo. Warfield parece resumir de forma magnífica a posição de
Calvino no tocante à relação entre revelação geral e especial quando escreve:
Uma é incompleta
sem a outra (...). Sem a revelação geral, a revelação especial ficaria
destituída desse fundamento que é parte do conhecimento essencial de Deus como
o poderoso e sábio, justo e bom, criador e regente de todas as coisas, sem o
que a revelação especial acerca da intervenção desse grande Deus no mundo para
a salvação dos pecadores não poderia ser inteligível , crível ou eficaz. (WARFIELD, B. B. The
Inspirationand Authority of the Bible. Philadelphia: Presbiterian and
Reformed, 1948, pg. 210).
A revelação geral oferece o ponto
de contato para a revelação especial, sendo estea última o conhecimento
salvífico de Deus. Além disso, o pensamento de Van Til não parece ser
característico da teologia reformada pós-calvinista. A principal dificuldade
qaqui pode ser exemplificada por um estudo de autoria de Jonh Platt, meu colega
em Oxford, sobre a função dos argumentos a favor da existência de Deus no
âmbito da teologia reformada holandesa no período de 1575 e 1650. Se Van Til
estiver correto em sua representação e aplicação da tradição reformada
(especialmente no que se refere à dita teologia reformada holandesa), seria de esperar que seus principais autores
repudiassem explicitamente uma apologética racional. E não é isso o que
acontece. Não há indicação alguma de que uma apologética racional resulte em
uma declaração humana de autonomia crua e irresponsável. Em parte alguma, a
apologética racional é tratada como gesto de desafio a Deus; pelo contrário,
ela é tratada como meio adequado e natural de formulação de um fundamento
racional lógico para a doutrina reformada de Deus.
Meus próprios modestos estudos
sobre a história da apologética indicam que as idéias de Van Til muito
provavelmente baseiam-se em uma escola de pensamento posterior, fundamentada
nos escritos do eminente teólogo e filósofo de Amsterdã, Abraham Kuyper, e não
na tradição clássica reformada propriamente dita. A apologética da "velha
Princeton", conforme se vê nos escritos de Warfield e outros, pode com
muito mais razão ser considerada uma representante mais fiel da tradição
reformada. (...) a estratégia formulada por Van Til peca por não utilizar ao
máximo os recursos dados por Deus para a apologética.
Todavia, quaisquer que sejam as
críticas que façamos a Van Til, ele sem dúvida demonstrou a necessidade de
fundamentar a apologética em bases teológica sólidas. Para sermos justos,
podemos afirmar que o rigor teológico do autor, e não os resultados específicos
de sua aplicação, é que lhe conferem lugar de honra entre os apologistas
contemporâneos. Essa observação naturalmente nos leva a investigar a importância
da reflexão teológica quanto à prática apologética.
E por falarmos em "pontos de contato" ou "de diálogo" com cosmovisões diferentes, vejam uma entrevista que o neoateu, dr. Richard Dawkins, um dos mais ferrenhos críticos da religião nos últimos tempos fez com o dr. Alister McGrath sobre fé, ciência e criação. Mesmo que não concorde com todos os pontos defendidos por McGrath (ele é evolucionista-teísta), não posso deixar de me entusiasmar pela coragem e lucidez como que este grande apologista expõe e defende a fé cristã bíblica e histórica.
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