DO LIVRO ORTODOXIA DE G. K. CHESTERTON
Capítulo 2 do livro Ortodoxia, de 1908
Adaptado por Artur Eduardo
"O Maníaco"
PESSOAS COMPLETAMENTE mundanas nunca entendem sequer o mundo; elas confiam plenamente umas poucas máximas clínicas não verdadeiras. Lembro-me de que, certa vez, fiz um passeio com um editor de sucesso, e ele fez uma observação que eu ouvira muitas vezes antes; é, na verdade, quase um lema do mundo moderno. Todavia, eu ouvi essa máxima cínica mais uma vez e não me contive: de repente vi que ela não dizia nada. Referindo-se a alguém, disse o editor: "Aquele homem vai progredir; ele acredita em si mesmo". Lembro-me de que, quando levantei a cabeça para escutar, meus olhos se fixaram num ônibus no qual estava escrito "Hanwell". Disse-lhe eu então: "Quer saber onde ficam os homens que acreditam em si mesmos? Eu sei. Sei de homens que acreditam em si mesmos com uma confiança mais colossal do que a de Napoleão ou César. Sei onde arde a estrela fixa da certeza e do Posso conduzi-lo aos tronos dos super-homens. Os homens que realmente acreditam em si mesmos estão todos em asilos de lunáticos". Ele disse calmamente que, no fim das contas, havia um bom número de homens que acreditavam em si mesmos e que não eram lunáticos internados em asilos. "Sim, certamente", retruquei, "e você mais do que ninguém deve conhecê-los. Aquele poeta bêbado de quem você não quis aceitar uma lamentável tragédia, ele acreditava em si mesmo. Aquele velho ministro com um poema épico de quem você se escondia num quarto dos undos, ele acreditava em si mesmo. Se você consultasse sua experiência profissional em vez de sua horrível filosofia individualista, saberia que acreditar em si mesmo é uma das marcas mais comuns de um patife. tores que não sabem representar acreditam em si mesmos; e os devedores que não vão pagar. Seria muito mais verdadeiro dizer que um homem certamente fracassará por acreditar em si mesmo. Total autoconfiança não é simplesmente um pecado; total autoconfiança é uma fraqueza. Acreditar absolutamente em si mesmo é uma crença tão histérica e supersticiosa como acreditar em Joanna Southcote: quem o faz traz o nome "Hanwell" escrito no rosto com a mesma clareza com que ele está escrito naquele ônibus".
A tudo isso meu amigo editor deu esta profunda e eficaz resposta: "Bem, se um homem não acredita em si mesmo, em que vai acreditar?" Depois de uma longa pausa eu respondi: "Vou para casa escrever um livro em resposta a essa pergunta". Este é o livro que escrevi para responder-lhe. Mas acho que este livro bem pode começar onde começou a nossa discussão — na vizinhança de um manicômio. Os modernos mestres da ciência muito se impressionam com a necessidade de iniciar todas as investigações com um fato. Os antigos mestres da religião igualmente se impressionavam com essa necessidade. Começavam com o fato do pecado — fato tão prático como as batatas. Pudesse ou não o homem ser lavado em águas milagrosas, não pairaria nenhuma dúvida de que ele desejava lavar-se. Mas certos líderes religiosos de Londres, não somente os materialistas, começaram a negar nos dias de hoje não a altamente questionável água, mas sim a inquestionável sujeira. Certos novos teólogos questionam o pecado original, que constitui a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada. Alguns seguidores do rev. R. J. Campbell, em sua espiritualidade quase exigente demais, admitem a ausência de pecado em Deus, que não podem ver nem em sonhos. Mas eles essencialmente negam o pecado humano, que eles podem ver na rua. Os santos mais poderosos, assim como os mais poderosos céticos, tomaram o mal positivo como ponto de partida de sua argumentação. Se for verdade (como certamente é) que o homem pode sentir uma felicidade extraordinária em esfolar um gato, então o filósofo religioso só pode fazer uma dentre duas deduções. Ou ele deve negar a existência de Deus, como fazem todos os ateus; ou deve negar a presente união entre Deus e o homem, como fazem todos os cristãos. Os novos teólogos parecem pensar que uma solução altamente racionalista é negar o gato. Nessa notável situação agora é simplesmente impossível (alimentando alguma esperança de apelo universal) começar, como faziam nossos pais, pelo fato do pecado. Esse fato, que para eles (e para mim) está mais na cara do que nariz, é exatamente o que foi diluído ou negado de modo especial. Mas embora os modernos neguem a existência do pecado, eu acho que eles ainda não negaram a existência do asilo para lunáticos.
Todos concordamos que há um colapso intelectual tão inconfundível como o desabamento de uma casa. Os homens negam o inferno, mas não, por enquanto, Hanwell. Para o objetivo do nosso argumento fundamental, este último pode muito bem estar onde aquele estava. Quero dizer que, assim como todos os nossos pensamentos e teorias eram outrora julgados por sua tendência a levar ou não o homem a perder sua alma, assim para o nosso objetivo presente, todos os pensamentos e teorias podem ser julgados por sua tendência a levar ou não o homem a perder a cabeça. É verdade que alguns falam, de modo superficial e leviano, da insanidade como sendo em si mesma atraente. Mas um momento de reflexão mostrará que, se uma enfermidade é atraente, trata-se em regra da enfermidade dos outros. Um cego pode ser um quadro pitoresco; mas exige-se um par de olhos para ver o quadro. De modo semelhante até mesmo a poesia mais louca da insanidade só pode ser apreciada por quem é sensato. Para o insano a insanidade é totalmente prosaica, porque é totalmente verdadeira. Um homem que imagina ser uma galinha é para si mesmo tão comum como uma galinha. Um homem que imagina ser um caco de vidro é para si mesmo tão sem graça como um caco de vidro. A homogeneidade de sua mente é o que o torna sem graça, e o que o torna louco. E somente pelo fato de percebermos a ironia de sua idéia que nós o achamos até engraçado; é somente pelo fato de ele não ver a ironia de sua idéia que ele é internado em Hanwell, não por outro motivo. Em resumo, as esquisitices chocam apenas as pessoas comuns. E por isso que as pessoas comuns têm uma vida muito mais instigante; enquanto as pessoas esquisitas sempre estão se queixando da chatice da vida. E por isso também que os novos romances desaparecem tão rapidamente, ao passo que os velhos contos de fada duram para sempre. Os velhos contos de fada fazem do herói um ser humano normal; suas aventuras é que são surpreendentes. Elas o surpreendem porque ele é normal. Mas no romance psicológico moderno o herói é anormal; o centro não é central. Consequentemente, as mais loucas aventuras não conseguem afetá-lo de forma adequada, e o livro é monótono. Pode-se criar uma história a partir de um herói entre dragões, mas não a partir de um dragão entre dragões.
O conto de fadas discute o que o homem sensato fará num mundo de loucura. O romance realista sóbrio de hoje discute o que um completo lunático fará num mundo sem graça. Comecemos, então, com um manicômio. Dessa estalagemfantástica e perversa vamos partir para a nossa jornada intelectual. Ora, se devemos examinar rapidamente a filosofia da sanidade, a primeira coisa a fazer no caso é apagar um enorme erro comum. Por toda parte existe a noção de que a imaginação, especialmente a imaginação mística, é perigosa para o equilíbrio mental do homem. Geralmente se diz que os poetas não são confiáveis do ponto de vista psicológico, e geralmente faz-se uma vaga associação entre cingir a cabeça com uma coroa de louros e fazer loucuras. Os fatos e a história contradizem totalmente essa visão. A maioria dos poetas realmente grandes não só foi de gente sensata, mas também extremamente prática. Se Shakespeare um dia dominou cavalos, isso se deu por ser ele o homem mais indicado para fazê-lo. A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insanidade é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem; mas os jogadores de xadrez sim. Os matemáticos enlouquecem, e os caixas; mas isso raramente acontece com artistas criadores. Como se verá, não estou aqui, em nenhum sentido, atacando a lógica: só afirmo que esse perigo está na lógica, não na imaginação. A paternidade artística é tão sadia quanto a paternidade física. Além disso, vale a pena observar que, quando um poeta foi realmente mórbido, o fato geralmente se deu porque ele tinha um ponto fraco de racionalidade no cérebro. Poe, por exemplo, foi realmente mórbido; não porque era poético, mas porque era especialmente analítico. Para ele até o jogo de xadrez era poético demais; ele não gostava de xadrez porque era um jogo cheio de peões e castelos, como um poema. Declaradamente, preferia as casas brancas do jogo de damas, por se parecerem mais com os meros pontos pretos num gráfico.
Talvez o caso mais convincente seja este: apenas um grande poeta inglês enlouqueceu, Cowper. E ele foi definitivamente levado à loucura pela lógica, pela repulsiva e estranha lógica da predestinação. A poesia não foi seu mal, foi seu remédio. A poesia preservou-lhe em parte a saúde. As vezes ele podia esquecer-se do rubro e sequioso interno, para o qual seu hediondo determinismo o arrastava em meio às águas caudalosas e as grandes e achatadas flores aquáticas do rio Ouse. Ele foi condenado por João Calvino; e quase foi salvo por John Gilpin. Em todas as partes vemos que os homens não enlouquecem sonhando. Os críticos são muito mais loucos que os poetas. Homero c completo e bastante calmo; os críticos é que o rasgam em trapos extravagantes. Shakespeare é exatamente Shakespeare; apenas alguns de seus críticos é que descobriram que ele era alguma outra pessoa. E embora João, o evangelista, tenha visto monstros estranhos em sua visão, ele não viu nenhuma criatura tão louca como um de seus comentadores. O fato geral é simples. A poesia mantém a sanidade porque flutua facilmente num mar infinito; a razão procura atravessar o mar infinito, e assim torná-lo finito. O resultado é a exaustão mental, como a exaustão física do sr. Holbein. Aceitar tudo é um exercício, entender tudo é uma tensão. O poeta apenas deseja a exaltação e a expansão, um mundo em que ele possa se expandir. O poeta apenas pede para pôr a cabeça nos céus. O lógico é que procura pôr os céus dentro de sua cabeça. E é a cabeça que se estilhaça. É uma questão menor, mas não irrelevante, o fato de esse contundente erro ser em geral sustentado por outro contundente erro de citação. Todos ouvimos citação do famoso verso de Dryden: "O grande gênio é da loucura aliado íntimo". Mas Dryden não disse que o grande gênio era aliado íntimo da loucura. O próprio Dryden era um grande gênio e tinha uma noção mais exata. Seria difícil achar um homem mais romântico que ele, ou mais sensato. O que Dryden disse foi o seguinte: "Grandes inteligências muitas vezes são aliadas íntimas da loucura", o que é verdade. É a mera presteza do intelecto que corre perigo de colapso. Também se poderia lembrar de que tipo de homem Dryden estava falando. Falava não de algum visionário lunático como Vaughn ou George Herbert. Falava de um homem cínico do mundo, um cético, um diplomata, um grande político pragmático. Um homem assim é de fato um íntimo aliado da loucura. Os incessantes cálculos de sua mente e da mente de outras pessoas são uma ocupação perigosa. É sempre perigoso para a mente investigar muito outra mente.
Uma pessoa irreverente perguntou-me por que dizemos em inglês "as mad as a hatter" ("louco como um chapeleiro"). Alguém ainda mais irreverente poderia responder que um chapeleiro é louco porque ele tem de medir a cabeça humana. E se os grandes argumentadores muitas vezes são maníacos, é igualmente verdade que os maníacos são em geral grandes argumentadores. Quando me envolvi numa polêmica com o CLARION sobre a questão do livre-arbítrio, aquele competente escritor, o sr. R. B. Suthers, disse que o livre-arbítrio era uma demência, porque implicava ações sem causa, e as ações de um lunático seriam sem causa. Não me debruço aqui sobre o desastroso lapso de lógica determinista. Obviamente, se alguma nação, mesmo a de um lunático, pode ser sem causa, odeterminismo está acabado. Se a cadeia da causação pode ser quebrada em benefício de um lunático, ela pode ser quebrada em benefício de um homem comum. Mas meu propósito é sublinhar algo mais prático. Seria natural, talvez, que um socialista marxista moderno nada soubesse sobre o livre-arbítrio. Mas seria certamente notável que um socialista marxista moderno nada soubesse sobre lunáticos. O sr. Suthers evidentemente não sabe nada sobre lunáticos. A última coisa que se pode dizer de um lunático é que suas ações são sem causa. Se algum ato humano qualquer pode grosso modo ser chamado de sem causa, trata-se de um ato menor de um homem sensato: assobiar andando por aí, golpear o capim com uma bengala, bater os calcanhares no chão ou esfregar as mãos. O homem feliz é que faz coisas inúteis; o homem doente não dispõe de força suficiente para ficar sem fazer nada. São exatamente essas ações despreocupadas e sem causa que o louco jamais saberia entender; pois o louco (como o determinista) em geral vê causa demais em tudo. O louco veria um significado de conspiração nessas atividades vazias. Ele pensaria que o golpe no capim era um ataque contra a propriedade privada. Pensaria que as batidas dos calcanhares eram um sinal para um cúmplice. Se o louco pudesse, por exemplo, ficar despreocupado, ele ficaria são. Todos os que tiveram a infelicidade de conversar com gente à beira ou no meio da desordem mental sabem que a qualidade mais sinistra dessa gente é uma clareza enorme de detalhes; a conexão de uma coisa a outra num mapa mais elaborado que um labirinto. Se você discutir com um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente dele se move muito mais rápido por não se atrapalhar com coisas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade. De fato, a explicação comum para a insanidade nesse respeito é enganadora.
O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo exceto a razão. A explicação oferecida por um louco é sempre exaustiva e muitas vezes, num sentido puramente racional, é satisfatória. Ou, para falar com mais rigor, a explicação insana, se não for conclusiva, é pelo menos incontestável. E o que se pode observar especialmente nos dois ou três tipos mais comuns de loucura. Se um homem disser, por exemplo, que os homens estão conspirando contra ele, você não pode discutir esse ponto, a não ser dizendo que todos os homens negam que são conspiradores; o que é exatamente o que os conspiradores fariam. A explicação dele dá conta dos fatos tanto quanto a sua. Ou se um homem disser que ele é, de direito, o rei da Inglaterra, não é uma resposta completa dizer que as autoridades existentes o chamam de louco; pois, se ele fosse o rei da Inglaterra, essa poderia ser a maneira mais sábia de agir para as autoridades existentes. Ou se um homem disser que ele é Jesus Cristo, não é uma resposta dizer-lhe que o mundo nega a sua divindade; pois o mundo negou a de Cristo. Apesar de tudo, ele está errado. Mas se tentarmos descrever seu erro em termos exatos, mão acharemos a tarefa tão fácil como havíamos imaginado. Talvez a maneira de nos aproximarmos ao máximo dessa descrição é dizer o seguinte: que a mente dele se move num círculo perfeito, porém reduzido. Um círculo pequeno é exatamente tão infinito quando um círculo grande; mas, embora seja exatamente tão infinito, não é tão grande. Da mesma forma a explicação insana é exatamente tão completa como a do sensato, mas não tão abrangente. Uma bala é exatamente tão redonda como o mundo, mas não é o mundo. Existe o que chamamos de universalidade reduzida; existe o que chamamos de eternidade pequena e restrita; você pode vê-la em muitas religiões modernas. Agora, falando como quem vê a realidade inteiramente de fora e de modo empírico, podemos dizer que a MARCA da loucura mais forte e inconfundível é a combinação entre a completude lógica e a concentração espiritual. A teoria do lunático explica muitas coisas, mas não as explica de um modo amplo. Quero dizer que se você ou eu estivesse lidando com uma mente no processo de tornar-se mórbida, nossa principal preocupação não deveria ser oferecer-lhe argumentos, mas sim ar; convencê-la de que existe algo mais limpo e mais arejado fora do sufoco de um único argumento. Suponhamos, por exemplo, que se tratasse do primeiro caso que tomei como típico; suponhamos que fosse o caso de um homem acusando a todos de conspiração contra ele.
Se pudéssemos expressar nossos mais profundos sentimentos de protesto e apelo contra essa obsessão, suponho que deveríamos dizer algo assim: "Certo, admito que você tem seus argumentos e os sabe de cor, e que muitas coisas se encaixam em outras coisas, como diz você. Admito que a sua explicação esclarece muitos fatos; mas quantos outros ficam de fora! Não há no mundo outras histórias além da sua? Todos os homens estão ocupados com a sua ocupação? "Vamos supor que os detalhes estejam corretos; talvez quando o homem da rua causou-lhe a impressão de não ver você, só o tenha feito por astúcia; talvez quando o policial lhe perguntou seu nome, só o tenha feito porque já o sabia. Mas você se sentiria muito mais feliz se simplesmente soubesse que essas pessoas não lhe deram a menor atenção! Muito mais ampla seria a sua vida se o seu eu pudesse tornar-se menor dentro dela; se você pudesse realmente olhar para os outros homens com uma curiosidade e um prazer comuns; se você pudesse vê-los caminhando tais quais eles são em seu radiante egoísmo e viril indiferença! Você começaria a interessar-se por eles porque eles não estão interessados em você. Você fugiria desse pequeno e espalhafatoso teatro no qual o seu pequeno enredo é continuamente representado, e você iria perceber-se sob um céu mais livre, numa aia cheia de maravilhosos estranhos." Ou suponhamos que se tratasse do segundo caso de loucura, aquele do homem que reivindica a coroa, o seu impulso seria responder: "Tudo bem! Talvez você saiba que é o rei da Inglaterra; mas por que preocupar-se com isso? Faça um magnífico esforço e você será um ser humano e desprezará todos os reis da terra". Ou poderia tratar-se do terceiro caso, o do louco que chamava a si mesmo de Cristo. Se nós expressássemos o nosso sentimento, deveríamos dizer: "Então você é o Criador e Redentor do mundo: mas como deve ser pequeno esse seu mundo! Que céu reduzido você deve habitar, com anjos do tamanho de borboletas! Como deve ser triste ser Deus; e um Deus incompetente! Será que de fato não existe nenhuma vida mais plena, nenhum amor mais maravilhoso do que o seu? E será que é mesmo na sua pequena e penosa compaixão que toda a humanidade deve depositar sua fé? Muito mais feliz seria você, haveria muito mais de você se o martelo de outro Deus pudesse destruir o seu pequeno cosmos, esparramando as estrelas como lantejoulas, e deixando você no espaço aberto, livre como os outros homens para olhar para cima e também para baixo!". E é preciso lembrar que a ciência mais genuinamente prática adota essa visão do mal mental; ela não procura discutir com ele como se fosse uma heresia, mas simplesmente quebrá-lo como se fosse um encantamento. Nem a ciência moderna, nem a religião antiga acreditam no pensamento completamente livre. A teologia desaprova certos pensamentos chamando-os de blasfemos. A ciência desaprova certos pensamentos chamando-os de mórbidos. Por exemplo, algumas sociedades religiosas, mais ou menos, estimularam os homens a não pensar em sexo.
A nova sociedade científica definitivamente estimula os homens a não pensar na morte; trata-se de um fato, mas é considerado um fato mórbido. E ao lidar com aqueles cuja morbidez tem um toque de mania, a ciência moderna se preocupa muito menos com a lógica pura do que um dervixe dançando. Nesses casos não é suficiente que o pobre infeliz deseje a verdade; ele precisa desejar a saúde. Nada pode salvá-lo a não ser uma fome cega de normalidade, como a fome de uma fera. Um homem não consegue sair do mal mental só por meio de seu pensamento; pois é exatamente o órgão do pensamento que se tornou doentio, ingovernável e, por assim dizer, independente. Ele só pode ser salvo pela vontade ou a fé. No momento em que a mera razão entra em movimento, ela se move no velho sulco circular; ele dará voltas e mais voltas em seu círculo lógico, exatamente como um homem num vagão de terceira classe do Inner Circle 4 ficará girando à toa nessa linha, a não ser que execute o voluntário, vigoroso e místico ato de descer na Rua Gower. A decisão nesse caso é tudo; há uma porta que precisa ser fechada para sempre. Todos os remédios são remédios desesperados. Todas as curas são curas milagrosas. Curar um louco não é discutir com um filósofo; é expulsar um demônio. E por mais sóbrio que seja o procedimento de médicos e psicólogos neste assunto, a atitude deles é profundamente intolerante — tão intolerante quanto a de Maria I, a sanguinária. A atitude deles é de fato a seguinte: que o louco deve parar de pensar, se quiser continuar a viver. O conselho deles é a amputação intelectual. Se a sua CABEÇA o ofende, corte-a; pois é melhor, mão só entrar no reino do céu como uma criança, mas entrar como um imbecil, em vez de, com todo o seu intelecto, ser lançado no inferno — ou no sanatório Hanwell. Assim é a experiência do louco; ele em geral é um argumentados muitas vezes um argumentador bem-sucedido. Sem dúvida ele poderia ser derrotado no mero raciocínio, e os argumentos contra ele poderiam ser colocados de maneira lógica. Mas podem ser colocados de maneira muito mais precisa em termos mais gerais e até mesmo mais estéticos. O louco está na limpa e bem iluminada prisão de uma idéia só: é afiado num só doloroso ponto. Está desprovido da sadia hesitação e sadia complexidade.
Agora, como expliquei na introdução, estabeleci apresentar nestes primeiros capítulos não tanto um diagrama de uma doutrina, mas alguns quadros de um ponto de vista. E descrevi detalhadamente minha visão do maníaco por este motivo: que exatamente como eu sou afetado pelo maníaco, também sou afetado pela maioria dos pensadores modernos. Aquele inconfundível estado de espírito, ou tom, que ouço provindo de Hanwell hoje em dia, também o ouço provindo da metade das cadeiras de ciência e cátedras de ensino da atualidade; e a maioria dos doutores da loucura são doutores da loucura em mais de um sentido. Todos apresentam exatamente aquela combinação que já observamos: a combinação de um raciocínio expansivo e exaustivo com um reduzido bom senso. São universais apenas no sentido de que tomam uma explicação superficial e a levam muito longe. Mas o padrão pode estender-se infinitamente e ainda ser um padrão pequeno. Eles vêem um tabuleiro de xadrez como branco sobre preto, e se o universo fosse pavimentado com ele, ainda seria branco sobre preto. Como o lunático, eles não conseguem alterar seu ponto de vista; não conseguem fazer um esforço mental e de repente vê-lo como preto sobre branco. Tome o primeiro e mais óbvio caso de materialismo. Como uma explicação do mundo, o materialismo tem uma espécie de simplicidade insana. Ele tem exatamente a qualidade do argumento do louco; temos simultaneamente a sensação de que ele cobre tudo e a sensação que deixa tudo de fora. Contemple algum materialista capaz e sincero como, por exemplo, o sr. McCabe, e você terá exatamente essa sensação única. Ele entende tudo, e nada parece digno de entendimento. O cosmos dele é completo em todos os rebites e engrenagens, mas mesmo assim seu cosmos é menor que o nosso mundo. De certo modo o esquema dele, como o lúcido esquema do louco, parece não ter consciência das energias alheias e da grande indiferença da terra; ele não pensa nas realidades da terra, nas pessoas em luta, ou nas mães orgulhosas, ou no primeiro amor, ou no medo no mar. A terra é muito grande, e o cosmos é muito pequeno.
O cosmos é praticamente o menor buraco em que um homem pode esconder a cabeça. É preciso entender que não estou discutindo a relação desses credos com a verdade; mas, no momento presente, apenas a sua
relação com a saúde. Mais adiante na discussão espero atacar a questão da verdade objetiva. Aqui falo apenas de um fenômeno de psicologia. Não tento neste momento provara Haeckel que o materialismo é falso, como também não tentei provar ao homem que se julgava Cristo que ele padecia as conseqüência de um erro. Aqui simplesmente comento o fato de os dois casos terem a mesma espécie de completude e a mesma espécie de incompletude. Pode-se explicar a detenção de um homem em Hanwell por um público indiferente dizendo que é a calcificação de um deus do qual o mundo não é digno. A explicação realmente explica. Da mesma forma, pode-se explicar a ordem do universo dizendo que todas as coisas, mesmo as almas dos homens, são folhas desabrochando de modo inevitável numa árvore absolutamente inconsciente — o destino cego da matéria. A explicação realmente explica, embora não, naturalmente, de uma forma tão completa como a do louco. Mas o ponto principal aqui é que a mente humana normal não se opõe às duas explicações, mas sente em relação a ambas a mesma objeção. Sua formulação aproximada é que se o homem em Hanwell for o Deus real, esse deus não é grande coisa. E, de modo semelhante, se o cosmos do materialista for o cosmos real, esse cosmos não é grande coisa. A realidade se encolheu. A divindade é menos divina que muitos homens; e (segundo Haeckel) a vida no seu todo é algo muito mais cinza, estreito e trivial do que muitos de seus aspectos. As partes parecem maiores que o todo. De fato devemos lembrar que, seja verdadeira ou não, a filosofia materialista é com certeza mais limitante do que qualquer religião. Num sentido, naturalmente, todas as idéias inteligentes são estreitas. Não podem ser mais amplas do que elas mesmas. Um cristão só é limitado no mesmo sentido em que um ateu é limitado. Ele não pode pensar que o cristianismo é falso e continuar sendo cristão; e o ateu não pode considerar que o ateísmo é falso e continuar sendo ateu. Mas, na prática, há um sentido muito especial em que o materialismo tem mais restrições que o espiritualismo. O sr. McCabe acha que sou escravo porque não me é permitido acreditar no determinismo. Eu acho que o sr. McCabe é escravo porque não lhe é permitido acreditar em fadas. Mas se examinarmos os dois vetos veremos que o dele é realmente um veto mais puro que o meu. O cristão tem perfeita liberdade para acreditar que existe uma considerável quantidade de ordem estabelecida e desenvolvimento inevitável no universo. Mas ao materialista não é permitido admitir em sua imaculada máquina a menor mancha de espiritualismo ou milagre. Ao coitado do sr. McCabe não é permitido reter nem sequer o menor diabrete, embora este possa estar escondido em algum jardim.
Os cristãos admitem que o universo é complexo e até misturado, exatamente da mesma forma que um homem sadio sabe que é complexo. O homem sadio sabe que nele há um vestígio da fera, um vestígio do demônio, um vestígio do santo, um vestígio do cidadão. Mais que isso, o homem realmente sadio sabe que nele há um vestígio do louco. Mas o mundo do materialista é totalmente simples e sólido, exatamente como o louco tem plena certeza de que ele é sadio. O materialista tem certeza de que a história tem sido simples e unicamente uma cadeia de causação, exatamente como a pessoa interessante mencionada acima tem plena certeza de que é simples e unicamente uma galinha. Os materialistas e os loucos nunca têm dúvidas. As doutrinas espirituais na verdade não limitam a mente como fazem as negações materialistas. Mesmo acreditando na imortalidade, eu não preciso pensar nela. Mas se a desacredito, nela não devo pensar. No primeiro caso. a estrada está aberta e posso ir adiante até onde quiser; no segundo caso, a estrada está fechada. Mas o argumento é ainda mais forte, e o paralelo com a loucura é ainda mais estranho. Pois o nosso argumento contra a teoria lógica e exaustiva do lunático foi que, certa ou errada, ela aos poucos destruía sua humanidade. Agora a acusação contra as principais deduções do materialista é que, certas ou erradas, elas aos poucos destroem a sua humanidade. Não estou me referindo apenas à bondade; estou me referindo a esperança, coragem, poesia, iniciativa, tudo o que é humano. Por exemplo, quando o materialismo leva os homens a um fatalismo completo (como em geral acontece), é totalmente inútil fingir que ele, nalgum sentido, é uma força libertadora. E absurdo dizer que se está promovendo especialmente a liberdade quando só se usa o livre-pensar para destruir o livre-arbítrio. Os deterministas vieram para amarrar, não para soltar. Podem muito bem chamar sua lei de "corrente" de causação. É a pior corrente que já prendeu um ser humano. Se você quiser, pode usar a linguagem da liberdade para falar do ensinamento materialista, mas é óbvio que essa linguagem é exatamente tão inaplicável a esse ensinamento como um todo quanto o é para falar de um homem trancafiado num hospício.Você pode dizer, se quiser, que o homem é livre para considerar-se um ovo cozido. Mas com certeza um fato muito mais sólido e importante é que, se ele for um ovo cozido, não está livre para comer, beber, dormir, caminhar ou fumar um cigarro. De modo semelhante você pode dizer, se quiser, que o corajoso especulador determinista é livre para não acreditar na realidade da vontade. Mas um fato muito mais sólido importante é que ele não está livre para levantar da cama, xingar, agradecer, justificar, instar, punir, resistir a tentações, incitar multidões, tomar resoluções de Ano Novo, perdoar pecadores, censurar tiranos ou até mesmo dizer "obrigado" pela mostarda. Antes de passar para outro assunto, permito-me observar que existe uma estranha falácia afirmando que o fatalismo materialista de certo modo favorece a misericórdia, a abolição de castigos cruéis ou de qualquer espécie. O chocante é que isso é o oposto da verdade. É perfeitamente defensável dizer que a doutrina da necessidade não estabelece diferença alguma; que ela deixa o espancador espancar e o bom amigo aconselhar como antes. Mas é óbvio que se ela tiver de interromper uma dessas duas atividades, o aconselhamento é que é interrompido. O fato de que os pecados são inevitáveis não impede o castigo; se impede alguma coisa impede a persuasão.
É provável que o determinismo leve à crueldade como certamente levará à covardia. O determinismo não é incompatível com o tratamento cruel dispensado aos criminosos. É (talvez) inconsistente com o tratamento generoso; com qualquer apelo a seus melhores sentimentos ou qualquer encorajamento em sua luta moral. O determinista não acredita em apelos à vontade, mas acredita na mudança de ambiente. Ele não deve dizer ao pecador: "Vá e não peque mais", porque o pecador não pode evitar o pecado. Mas ele pode mergulhar o pecador em óleo fervente, pois esse óleo é um ambiente. Portanto, considerado como uma figura, o materialista tem o fantástico perfil da figura de um louco. Os dois assumem uma posição simultaneamente incontestável e intolerável. É óbvio que tudo isso não é verdade apenas em relação ao materialista. O mesmo se aplica ao outro extremo da lógica especulativa. Há um cético muito mais terrível do que aquele que acredita que tudo começou na matéria. E possível identificar o cético que acredita que tudo começou nele mesmo. Ele não duvida da existência de anjos e demônios, mas da existência de homens e vacas. Para ele, seus próprios amigos são uma mitologia criada por ele mesmo. Ele criou seu próprio pai e sua própria mãe. Essa fantasia horrível tem em si algo incontestavelmente atrativo para o egoísmo um tanto místico de nossa época. O editor que pensava que os homens progrediriam se acreditassem em si mesmos, aqueles seguidores do super-homem que estão sempre tentando encontrá-lo no espelho, aqueles escritores que falam em registrar sua personalidade em vez de criar vida para o mundo, apenas alguns centímetros separam toda essa gente desse terrível vazio. Depois, quando este bondoso mundo que nos cerca tiver sido denegrido como uma mentira; quando amigos desaparecerem transformados em fantasmas, e os fundamentos do mundo falharem; depois, quando o homem, não acreditando mais em nada e em ninguém, estiver sozinho em seu pesadelo, então o grande lema individualista será escrito sobre ele em vingadora ironia. As estrelas serão apenas pontos na escuridão de seu cérebro; o rosto de sua mãe será apenas o esboço de seu próprio pincel insano nas paredes de sua cela. Mas sobre sua cela estará escrito, com assustadora verdade: "Ele acredita em si mesmo".
Tudo o que nos interessa aqui, porém, é observar que esse pensamento extremo totalmente egoísta exibe o mesmo paradoxo que exibe outro extremo do materialismo. É igualmente completo em teoria e igualmente mutilado na prática. Em nome da simplicidade, é mais fácil afirmar essa idéia dizendo que o homem pode acreditar que está sempre num sonho. Ora, obviamente não pode haver nenhuma prova positiva de que ele não está num sonho, pela simples razão de que não se pode apresentar nenhuma prova que não se pudesse igualmente apresentar num sonho. Mas se o homem começasse a incendiar Londres e a dizer que a sua governanta logo o acordaria para tomar o café da manhã, nós deveríamos prendê-lo e colocá-lo com outros lógicos naquele lugar ao qual aludimos várias vezes no decorrer deste capítulo. O homem que não consegue acreditar nos seus sentidos, e o homem que não consegue acreditar em nada além de seus sentidos, os dois são insanos, porém, a insanidade deles não é provada por algum erro na sua argumentação, mas pelo erro evidente de sua vida. Os dois se trancaram em duas caixas, em cujo interior estão pintados o sol e as estrelas; os dois estão incapacitados de sair, um para entrar na saúde e felicidade do céu; o outro nem sequer para entrar na saúde e felicidade da terra. A posição deles é bastante razoável; mais que isso, num sentido é infinitamente razoável, exatamente como uma moeda de dez centavos é infinitamente circular. Mas existe isso que conhecemos como uma infinidade mesquinha, uma eternidade vil e escrava. E engraçado notar que muitos dentre os modernos, céticos ou místicos, tomaram como seu distintivo um certo símbolo oriental, que é exatamente o símbolo dessa nulidade extrema. Quando querem representar a eternidade, eles a representam usando uma serpente com seu rabo na boca. Há um chocante sarcasmo na imagem dessa refeição nada agradável. A eternidade dos fatalistas do materialismo, a eternidade dos pessimistas orientais, a eternidade dos arrogantes teosofistas e cientistas mais altos de hoje está. de fato, muito bem representada pela serpente comendo o próprio rabo, um animal aviltado que destrói até a si mesmo. Este capítulo é puramente prático e diz respeito àquilo que constitui a marca e o elemento principal da insanidade; podemos dizer, em resumo, que é a razão usada sem raízes, a razão no vazio.
O homem que começa a pensar sem os apropriados primeiros princípios fica louco; começa a pensar do lado errado. Nas páginas restantes deste livro devemos tentar descobrir qual é o lado certo. Mas, se isso é o que leva os homens à loucura, podemos perguntar, para concluir, o que é que os mantém sadios. No final do livro espero dar uma resposta definitiva, que alguns vão achar definitiva demais. Mas por enquanto é possível da mesma maneira unicamente prática dar uma resposta geral sobre o que na história da humanidade concreta mantém a sanidade humana. Enquanto se tem um mistério se tem saúde; quando se destrói o mistério se cria a morbidez. O homem comum sempre foi sadio porque o homem comum sempre foi um místico. Ele aceitou a penumbra. Ele sempre teve um pé na terra e outro num país encantado. Ele sempre se manteve livre para duvidar de seus deuses; mas, ao contrário do agnóstico de hoje, livre também para acreditar neles. Ele sempre cuidou mais da verdade do que da coerência. Se via duas verdades que pareciam contradizer-se, ele tomava as duas juntamente com a contradição. Sua visão espiritual é estereoscópica, como a visão física: ele vê duas imagens simultâneas diferentes e, contudo, enxerga muito melhor por isso mesmo. Assim, ele sempre acreditou que existia isso que se chama de destino, mas também isso que se chama de livre-arbítrio. Assim, ele acreditava que as crianças eram de fato o reino do céu, mas, apesar disso, deviam obedecer ao reino da terra. Ele admirava a juventude por ela ser jovem e a velhice por não o ser. E exatamente esse equilíbrio de aparentes contradições que tem sido a causa de toda a vivacidade do homem sadio. Todo o segredo do misticismo é este: que o homem pode compreender tudo com a ajuda daquilo que não compreende. O lógico mórbido procura tornar tudo lúcido e consegue tornar tudo misterioso. O místico permite que uma coisa seja mística, e todo o resto se torna lúcido. O determinista torna a teoria da causação totalmente clara, e depois descobre que não pode dizer "por favor" à empregada. O cristão permite que o livre-arbítrio continue sendo um mistério sagrado; mas, por causa disso, sua relação com a empregada assume uma claridade cintilante e cristalina. Ele coloca a semente do dogma numa escuridão central; mas o dogma se ramifica em todas as direções com abundante saúde natural. Sendo que tomamos o círculo como o símbolo da razão e da loucura, podemos muito bem tomar a cruz como o símbolo ao mesmo tempo do mistério e da saúde.
O budismo é centrípeto, mas o cristianismo é centrífugo: ele se propaga. Pois o círculo é perfeito e infinito em sua natureza; mas é fixo para sempre em seu tamanho; ele nunca pode ser maior ou menor. Mas a cruz, embora tendo no seu centro uma colisão e contradição, pode estender seus quatro braços eternamente sem alterar sua forma. Por ter um paradoxo no seu centro ela pode crescer sem mudar. O círculo retorna sobre si mesmo e está encarcerado. A cruz abre seus braços aos quatro ventos; é o poste de sinalização dos viajantes livres. Somente os símbolos têm valor, embora obnubilado, quando se fala dessa questão profunda. E outro símbolo da natureza física expressa bastante bem o lugar real do misticismo perante a humanidade. A única coisa criada para a qual não podemos olhar é a única coisa em cuja luz olhamos para tudo. (Como o sol ao meio-dia, o misticismo explica todas as outras coisas por meio da luz ofuscante de sua vitoriosa invisibilidade.) O intelectualismo independente é (no sentido exato da frase popular) só brilho de lua; pois é luz sem calor, e é luz secundária, refletida por um mundo morto. Mas os gregos estavam certos quando fizeram de Apolo o deus tanto da imaginação quanto da sanidade; pois ele era ao mesmo tempo o patrono da poesia e o patrono da cura. De dogmas necessários e de uma crença especial falarei adiante. Mas aquele transcendentalismo pelo qual todos os homens vivem ocupa primeiramente a posição semelhante à do sol no céu. Temos consciência dele como uma espécie de esplêndida confusão; é algo brilhante e informe, ao mesmo tempo fulgor e borrão. Mas o círculo da lua é tão claro e inconfundível, tão recorrente e inevitável, como o círculo de Euclides sobre um quadro-negro. Pois a lua é absolutamente razoável; e a lua é a mãe dos lunáticos: ela deu a todos eles o seu nome.
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