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terça-feira, 2 de julho de 2013

A Nova Retórica de Chaïm Perelman e a eterna questão dos valores

OS VALORES NA NOVA RETÓRICA DE PERELMAN
Por Regina Rossetti (professora USP)
Adaptado por Artur Eduardo
Chaïm Perelman, filósofo polonês, que fez toda sua carreira acadêmica e intelectual na  Bélgica da primeira para a segunda metade do século XX, tem como marca principal a elaboração de uma teoria da argumentação que busca fundamentar sua idéia de filosofia regressiva, que se caracteriza como um anti-absolutismo realista e historicamente confirmado mentação,pretende apontarpara asdistorções eparaospreconceitosreferentes aoestudoda retórica, buscando demonstrar, dessamaneira, como a tradição racionalista impossibilitou o exercício das liberdades na elaboração e na elucidação da ‘problemática filosófica’.
O itinerário proposto por Perelman é a recuperação conceitual da razão teórica e da prática aristotélicas, passando pela tradição de estudos retóricos, que historicamente se formou a partir dos trabalhos de Cícero e de Quintiliano. No mesmo sentido, procede à análise da tradição filosófica racionalista cartesiana com a qual debate, passando pelas  principais objeções historicamente feitas ao exercício da dialética (Chaïm Perelman, 1999a, p. 47 e segs.). Perelman estabelece uma relação entre sua teoria da argumentação ou nova retórica (Chaïm Perelman, 2000c, p. 5), uma teoria geral dos valores (Chaïm Perelman, 2000b, p. 141; 2000a, p. 3-245) e a linguagem própria da reflexão filosófica (Chaïm Perelman, 2000a, p. 361-399). Ele trata da questão de como se dá uma justificativa ao método filosófico, num âmbito diferente do que fora constituído e tradicionalmente apoiado no racionalismo cartesiano, o que toma como modelo de raciocínio a lógica formal. 
Esta, por sua vez, tem em Frege uma reformulação fundamental, na medida em que ele buscou como modelo o raciocínio lógico dos matemáticos. Perelman, cuja tese de doutorado tem o pensador alemão Frege como centro de estudos, sugere uma mudança de ótica, condenando a tradição por sua inflexibilidade formal. Busca desenvolver uma metodologia filosófica a partir do raciocínio jurídico, tal  como historicamente foi constituído, e toma-o como modelo de apreciação e decisão de argumentos filosóficos. Ele quis desenvolver uma estrutura de pensamento, cuja principal característica depreende-se da necessidade de persuadir o interlocutor no ato do diálogo, levando-o a aderir às razões de uma tese, consideradas como suficientemente justificadas (Chaïm Perelman, 2000a, idem; 1999a, p. 131-151)Essa abordagem busca enfocar o problema metodológico da filosofia a partir de uma perspectiva epistemológica, lógica e axiológica. Ao tratar do pensamento filosófico, que deve ser aberto a indagações e destinado à compreensão do real em suas múltiplas e infinitas possibilidades, a tradição cartesiana formatou a reflexão como um processo racional que, visando assegurar a veracidade do conhecimento, deveria ser restringido por um raciocínio suficientemente rígido, incapaz de abrir concessões ao não-evidente ou ao refutável. 
Recebe, então, nítida formatação do raciocínio lógico-formal, que é fechado e destinado à certificação da verdade das afirmações discursivas. A dificuldade dessa postura consiste num equívoco estrutural do princípio metodológico adotado para a reflexão filosófica do pensamento. Isso quer dizer que, com a adoção desse modelo criou-se uma restrição formal desnecessária, arbitrariamente imposta ao desenvolvimento do conteúdo do pensamento, por uma lógica parcialmente considerada como suficiente à realização das investigações filosóficas. Ainda é preciso salientar que essa lógica refere-se apenas à formal, como concebida por Aristóteles. Nessa perspectiva, é necessário verificar os limites desse raciocínio e averiguar como se comporta o discurso filosófico numa linguagem diversa, desenvolvida a partir da nova retórica de Perelman, que é promitente de razoável flexibilização da forma no âmbito da reflexão.
CRÍTICA AO DISCURSO FILOSÓFICO RACIONALISTA MODERNO 
No entanto, para que tenha sentido essa perspectiva do problema, é necessário observar o que levou a filosofia a adotar um modelo tão rígido e o que justificaria a sua mudança. Perelman explica que a retórica, antes considerada como um modelo adequado para a elaboração do discurso filosófico, obteve seu enfraquecimento diante de um contexto de ascensão do pensamento burguês.Esse tipo de pensamento generalizou o papel da evidência (especificamente pessoal do protestantismo, racional do cartesianismo ou  sensível do empirismo), funcionando como um meio de negação da razão prática e elevação do problema do conhecimento científico, o que ensejou posteriormente o positivismo científico (Chaïm Perelman, 1999b, p. 26. Roland Barthes, 2001, p. 39 e segs.). 
Todavia, como ele mesmo foi capaz de afirmar, essa concepção metodológica fundada num formalismo positivo, não encontra justificativa nos dias de hoje, uma vez que os projetos filosóficos apontam cada vez mais para a necessidade de se poderem tomar decisões razoáveis, precedidas de deliberação e discussões, mesmo quando se trate de resolução de problemas teóricos (Chaïm Perelman, 1999b, p. 27). Então, é preciso esclarecer que, conformePerelman,somente a partir de umamudança de ótica metodológica será possível compreender o papel das liberdades e da teoria da argumentação no desenvolvimento do discurso filosófico. Isso significa que será preciso confrontar a tradição e a metodologia filosóficas que ao tempo de Perelman imperavam com propostas teóricas de caráter positivista (e absolutista), para ser possível elaborar uma reflexão que atenda a determinadas necessidades que, ainda em nosso tempo, clamam por uma solução contra as ameaças do niilismo e do ceticismo contemporâneos.
O problema filosófico perelmaniano começa com a constatação de que o discurso filosófico moderno e sua pretensa realização iluminista, não conseguiram lograr êxito devido à utilização de um modelo de raciocínio insuficiente e inadequado para demandar o conteúdo de sua reflexão. Perelman viu no formalismo e na busca do absoluto uma antinatureza do pensamento filosófico que, do contrário, deveria contar com uma liberdade ilimitada para resolver seus problemas,sempre de uma maneira não coercitiva, nem arbitrária (Chaïm Perelman, 2000a, p. 85-92 e 145-233). No entanto, o que ocorreu na Modernidade foi a formação de ideais que tomaram a frente das necessidades reais, buscando findar a busca pela verdade como quem dá a última palavra em uma discussão. Mas enquanto Perelman aponta primordialmente para um problema formal, torna-se saliente um problema substancial do pensamento. É que as limitações do raciocínio, impostas pela exclusividade de uso da lógica formal na elaboração e na solução dos problemas filosóficos, refletem, de certa maneira, os valores que orientam a construção da linguagemresponsável pela comunicação entre osintegrantes de uma coletividade.
Nesse sentido,se a linguagem formalista da lógica é coercitiva, pois, ao tratar do evidente ou da demonstração irrefutável,não dá espaço a discordâncias ou opiniões de qualquer natureza, sua opção como metodologia filosófica de tratamento de problemas pode indicar o valor que se dá à liberdade no desenvolvimento do pensamento filosófico, ou seja, pode apontar para uma significativa desconsideração da liberdade como fundamento epistemológico do 0 discurso filosófico. Se essa foi a opção da tradição filosófica fundadora do projeto iluminista, este fracassou  como condição fundamental dos direitos e liberdade sda coletividade; se a Modernidade pretendeu a elaboração de um discurso filosófico libertador e revelador da verdade, na atualidade, o formalismo enrijeceu a linguagem, enclausurando-a numa espécie de ‘receptáculo lógico de estruturas mentais ideais’, que não abriram espaço à discussão,nem a novos valores,nem à divergência acerca dos valores persistentes. Comisso, comessa castração do pensamento e da linguagem,tornou-se necessária uma recuperação de antigas soluções, com vista à resolução de problemas, o que Perelman desenvolve a partir da retomada da retórica e com uma reflexão a respeito da teoria geral dos valores, tudo atrelado a uma nova teoria da argumentação desses valores, o que se apresenta como umameta-axiologia em Perelman.
O quadro acima é importante, porém incompleto: a Retórica, deve-se ressaltar, como nos parâmetros aristotélicos, é a arte da persuasão, que se dá através da demonstração a teses justificadas. É claro que, em termos de linguagem, a demonstração tem uma força maior, mas não se deve aliar a argumentação à manipulação exclusivamente, o que se seria um equívoco. A Retórica meramente manipuladora pode ser associada à sofística pré-aristotélica e combatida por Platão. A Nova Retórica de Perelman - que além de filósofo era jurista - visa resgatar este aspecto da Retórica aristotélica, aliando à mesma o conceito novo de interoperabilidade do "auditório como construção do orador".
RACIOCÍNIOS ARGUMENTATIVOS
O labor perelmaniano começa por determinar a natureza dosraciocínios, a partir de seus instrumentos de elaboração, o que acaba por distinguir o raciocínio formal, estudado pela lógica, do argumentativo, estudado pela retórica. O primeiro, seria voltado às investigações do evidente, teórico ou empírico, devendo criar toda uma trama de conceitos que, dada sua rigidez formal, não estaria sujeito a qualquer espécie de refutação.Isso porque seu objeto não se sujeitaria a opiniões, crenças ou valorações, mas tão somente à verificação e à demonstração da verdade ou da falsidade. Já o segundo, seria destinado àqueles pensamentos que, por não terem como objeto de investigação qualquer espécie de evidência, devem tratar de discutir valores, crenças e opiniões, num âmbito no qual não há importância em conhecer a verdade de uma afirmação, mas somente em promover a adesão ou não de afirmações que não podem ser provadas, embora possam ser justificadas pela plausibilidade. Nesse sentido, esse raciocínio busca desenvolver uma argumentação desprovida de um formato coercitivo, mas dotada de um conteúdo e de uma estrutura peculiar. E isso se justifica no fato desse raciocínio não ter qualquer compromisso com a verdade (Chaïm Perelman, 1999a, p. 65 e segs.). 
Assim, a teoria da argumentação na proposta de Perelman tem como uma de suas finalidades fundamentais promover uma comunicação de consciências, o que certamente se dá no desenvolvimento da linguagem. Essa condição foi justificada por Jacques Lacan, num seminário apresentado por Perelman em 1960, na Sociedade Francesa de Filosofia (Chaïm Perelman, 2000a, p. 123 e segs.). Por isso, é necessário explicitar as espécies de raciocínios argumentativos e qualificar aquela a que se adequaria à filosofia. Segundo o próprio Perelman, o raciocínio poderá ser deliberativo, judiciário ou epidíctico. O primeiro diz respeito às discussões e matérias próprias das relações políticas, públicas ou sociais. É o argumento próprio dos políticos reunidos em assembléia ou do administrador público, que precisa justificar suas decisões e suas ações em face do interesse público que se sobrepõe à necessidade do particular. 
O segundo, diz respeito às decisões proferidas por aqueles que têm um dever de ofício em resolver contendas e divergências de ordem normativa e de responsabilidade legal, o que tem fundamento e representação num poder coercitivo legítimo e formalmente constituído. Trata-se de argumentos típicos dos juízes e dos árbitros, responsáveis por deliberar questões polêmicas e até contraditórias. Por fim, o terceiro refere-se àquele tipo de discurso que tem uma qualidade muito mais artística do que decisória,sendo seu objetivo primordial uma adesão à sua proposta (Chaïm Perelman, 1999a, p. 66). Nesse caso, a finalidade da argumentação não é a de levar alguém a tomar uma decisão e a agir conforme ela, massomente a de provocar um acolhimento espiritual da tese articulada no exercício oratório, tornando o ouvinte um adepto participante do teor do discurso proferido (Roland Barthes, 2001, p. 75 e segs.).
É no âmbito do raciocínio epidíctico que estaria situado o discurso filosófico, na medida emque ele tenta, com base em valores e decisões freqüentemente aceitos, levar o interlocutor (filósofo) a aderir, com razoável intensidade, às teses próprias de uma reflexão filosófica. Essa idéia encontra respaldo na própria noção de ‘tradição filosófica’, concebida como um devir de idéias propiciadas pelas constantes mudanças culturais e motivadas por uma razão prática de significativo teor axiológico.
LIBERDADES POSSÍVEIS NA ELABORAÇÃO DO DISCURSO FILOSÓFICO
Diante da imensidão de temas abordados na monumental obra de Chaïm Perelman, destaca-se neste artigo o tema das liberdades possíveis na elaboração do discurso filosófico, o que compreenderá determinadas especificações temáticas, como doravante se passa a expor. Preliminarmente, se volta a atenção a dois aspectos comunicacionais especificamente relativos ao desenvolvimento discursivo do trabalho filosófico. O primeiro, diz respeito à questão dos critérios metodológicos a partir dos quais é possível a elaboração da problemática filosófica como uma busca racional e sistemática pela verdade, uma busca construtora de conceitos e de teorias. Trata-se de uma questão epistemológica acerca do pensamento, pois requer uma definição preliminar dos parâmetros racionalizantes de investigação, ou seja, pressupõe uma razão teórica governante domodo como o problema é colocado e dos possíveis caminhos para a sua solução. Isso ocorrerá por meio de uma linguagem adequada à elaboração da reflexão filosófica, isto é, de uma razão prática da filosofia (Chaïm Perelman, 2000a, p. 362-364). 
Já o segundo aspecto, diz respeito ao problema da validade do modo e da forma como a problemática filosófica é construída e da possibilidade dela ser elaborada sem, necessariamente, requerer a afirmação de uma verdade, tal como pretendida pelo modelo cartesiano (Chaïm Perelman, 1999a, p. 199). Aqui, se entende a linguagem como um produto cultural, nem necessário, nem arbitrário, mas um elemento racional historicamente constituído (realizado) que, embora não seja eterno e absoluto, tem as suas razões para ser construído e desenvolvido, tal como o é em sua comunidade originária (Chaïm Perelman, 2000b, p. 154). Assim, a compreensão da substancialidade dessa linguagem, de seus componentes e de suas estruturas lingüísticasinternas, dependerá de uma real ambientação comunicacional, o que exigirá um novo modelo de racionalização do tra balho filosófico. Nesse sentido, segundo a proposta perelmaniana, a linguagem manifesta numa dada língua tem suassingularidades características, que são decorrentes de determinados valores comuns, provindos de acordos espirituais interdependentes, que atuam como o motor de seu próprio desenvolvimento, o que lhes afigura a qualidade de ser doador de sentido. Trata-se de uma problemática de natureza lógica, segundo a qual procura-se verificar as “resistências” dos argumentos filosoficamente plausíveis às objeções racionais dotadas da mesma qualidade.
Então, a partir dessas primeiras observações, o tema das liberdades possíveis na elaboração do discurso filosófico se especifica em liberdade-de-pensamento, liberdade de-decisão e liberdade-de-expressão, em suas relações intrínsecas com a argumentação que objetiva persuadir alguém acerca de determinada reflexão filosófica. A partir daqui as questões que começama surgir, e que dizem respeito às liberdades possíveis, buscam compreender quem são os interlocutores do discurso filosófico, quais são os parâmetros aceitáveis ou não da respectiva reflexão, qual o possível formato desse discurso e o que e em que condições o ouvinte do discurso o recebe para sua aceitação ou refutação. 
Perpassando os principais trabalhos de Perelman, é possível encontrar um imenso arsenal de explicações referentes a essas indagações, a partir das quais formulamos a seguinte tese: se Perelman preocupou-se em combater toda forma de absolutismo filosófico, apontando para o ‘regressivismo’ das filosofias primeiras, característica fundamental de sua filosofia; se ele salienta o tradicional equívoco racionalista, que consiste em querer reduzir toda a filosofia a uma metafísica, por meio de formalismo lógico irrefutável e não falsificável, o que seria uma antinatureza da reflexão filosófica, sempre ilimitada no conteúdo; se ele ressalta esse vício formal como o erro insistente da filosofia, substituindo-o por um raciocínio argumentativo, dotado de um respectivo aparato metodológico retórico; então, vemos a linguagem, assim como a trata o pensamento perelmaniano, quando fundada em parâmetros formais e substanciais mais flexíveis, e desenvolvida na atividade dialógica histórica e culturalmente constituída, como a única via concreta de efetivação das liberdades, o que somente terá fundamento numa teoria geral dos valores que seja capaz de dialogar com as necessidades estruturais requeridas pelo próprio discurso filosófico (Chaïm Perelman, 2000a, p. 3 e segs.).
Enfim, entende-se que Perelman denuncia um vício metodológico da filosofia e aponta para uma possívelsolução, ainda que, emsuas palavras,relativa somente aos aspectosformais da problemática em voga.Aidéia é partir da própria solução perelmaniana e ampliá-la para a própria estrutura do discurso filosófico, a partir das considerações feitas por sua teoria da argumentação, como materialização e conseqüente realização dos valores das liberdades de pensamento, de decisão e de expressão, sempre a partir dos elementos que lhe são cultural e historicamente característicos. (...)
*Excerto do artigo "A Nova Retórica de Perelman", da Dra. Regina Rossetti, publicado originalmente no Caderno.com, Caderno de Pesquisa em Comunicação e Inovação — Vol.1 - No 2 - 2o semestre de 2006.

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