Mesmo antes da Reforma, Romanos 9 tornou-se o locus classicus para a doutrina da predestinação individual e incondicional. Arminius admite que, por algum tempo, Romanos 9 “sempre me pareceu envolto na mais densa escuridão, e mais difícil de explicação.” [1] Depois de muito estudo, entretanto, ele alcançou um entendimento mais claro do texto. O objetivo de Romanos 9, ele disse, é o mesmo que o da epístola como um todo. A mensagem é que “o evangelho, não a lei, é o poder de Deus para salvação, não para aquele que trabalha, mas para aquele que crê; porque no evangelho é manifesta a justiça (iustitia) de Deus, pela qual a salvação é obtida por meio da fé em Cristo”. [2]
Arminius argumenta que o nono capítulo defende esta mensagem básica contra as objeções dos judeus “que se esforçavam com todo o seu poder para derrubá-la”. [3] Na visão de Arminius, aqui está o problema sendo abordado por Paulo: “Os judeus” estão afirmando que se Paulo estiver correto, a palavra de Deus falhou. Pois “se a justiça e salvação consistem na fé no Cristo que Paulo prega,” e “porque muitos judeus não creem em Cristo,” então “segue-se que grande parte dos judeus foi excluída da aliança.” [4] Entretanto, é claro, Paulo nega que a palavra de Deus tenha falhado (Rm 9:6).
A diferença entre Arminius e Theodore Beza (quem Arminius tratou como seu interlocutor aqui) é clara para Arminius. A visão de Beza implica a seguinte resposta para o problema: “Deus, na verdade, pela palavra da promessa convidou todos os judeus e os chamou à comunhão na aliança; mas ainda por seu eterno decreto e propósito, ele determinou fazer somente alguns dentre os judeus verdadeiros participantes dela, enquanto o resto foi preterido (praeteritis) e deixado em seus antigos estados.” [5] Sua própria interpretação, por outro lado, responde a questão negando que a palavra de Deus tenha falhado porque “Deus, por sua própria palavra e expressão da promessa, tornou conhecido que consideraria (censere) seus filhos aqueles dos judeus que buscassem a justiça e salvação que vem da fé; mas que ele consideraria como estrangeiros aqueles que buscassem o mesmo na lei” (veja Rm 9:30-32). [6]
A questão crucial, então, é a tentativa de obter a salvação por meio de obras da lei ao invés de aceitar a salvação pela fé em Cristo. Arminius está convencido de que a resposta a este problema é de fato clara, e ele considera isso importante na interpretação dessa passagem. A salvação é através da fé em Cristo ao invés de por tentativas de adquiri-la pela prática da lei, e Arminius entende Jacó e Esaú de uma forma semelhantemente tipológica. Não deveriam ser abordados “em si mesmos, mas como tipos.” [7] Mais especificamente, Esaú (e Ismael também) é um “tipo” de “filho de sangue”; Esaú tipifica aqueles que buscam adquirir a salvação por meio da lei. Jacó, por outro lado, tipifica os “filhos da promessa” que respondem em fé à provisão divina da salvação em Cristo. [8] Assim, essa tipologia significa “primeiro, que o propósito (propositum) de Deus está de acordo com a eleição; então, esse propósito depende daquele que chama, e não de obras…[Isso] é um sinal de que esse propósito não depende de obras, mas daquele que chama; isto é, que Deus ama aqueles que buscam a justiça e a salvação pela fé em Cristo; mas odeia aqueles que buscam o mesmo pelas obras da lei.” [9]
Com respeito à declaração de que “ninguém resiste à sua vontade” (veja Rm 9:19), Arminius negou que poderia haver qualquer vontade contraditória interna em Deus. [10] Sua razão para este posicionamento é solidamente enraizada: a doutrina da simplicidade remove totalmente essa possibilidade. Ele toma a negação de Paulo de injustiça em Deus da seguinte forma: quando Paulo exclama “De maneira nenhuma (Absit)!” (Rm 9:14), ele deseja que “jamais passe pela nossa mente que exista qualquer injustiça em Deus, o qual, em si mesmo justo (in se iustus), na verdade, existindo como a própria justiça, não faz nada, e, de fato, não pode fazer nada exceto aquilo que esteja mais completamente de acordo com sua natureza”. [11] O fato de Deus “ter misericórdia de quem ele quiser ter misericórdia” (Rm 9:15), “remove a acusação de injustiça contra Deus simplesmente pela palavra ‘misericórdia’ aqui empregada; que, visto que ela pressupõe miséria, e portanto pecado,” significa que a injustiça e a culpa caem sobre a humanidade. [12] Em outras palavras, o desejo de Deus de salvar os crentes penitentes e de condenar os incrédulos impenitentes é imutável e não pode ser resistido. [13]
Assim, Arminius conclui que enquanto a posição de Beza na verdade mantém aberta a acusação de injustiça divina, sua própria interpretação do texto “resulta que Deus não pode de nenhuma forma ser condenado por injustiça”. [14] Jacó e Esaú devem ser entendidos tipologicamente, e, no próprio entendimento da passagem, deveria estar claro que a palavra de Deus não falhou e que Deus não é injusto. Muito pelo contrário, o Deus da justiça, sabedoria e bondade elegeu para prover salvação a todos que receberem a salvação aceitando a Cristo e seus benefícios em fé.
Tradução: Samuel Paulo Coutinho
Fonte: Jacobs Arminius: Theologian of Grace, pp. 132-134.
Fonte: Jacobs Arminius: Theologian of Grace, pp. 132-134.
[1] Cap. IX Rom, em Opera, p. 778; Works 3: 485
[2] Cap. IX Rom, em Opera, p. 778; Works 3: 485-486
[3] Cap. IX Rom, em Opera, p. 778; Works 3: 486
[4] Cap. IX Rom, em Opera, p. 779; Works 3: 486-487
[5] Cap. IX Rom, em Opera, p. 780; Works 3: 488
[6] Cap. IX Rom, em Opera, p. 780; Works 3: 488
[7] Cap. IX Rom, em Opera, p. 781; Works 3: 490
[8] Cap. IX Rom, em Opera, p. 780-785; Works 3: 489-495
[9] Cap. IX Rom, em Opera, p. 784; Works 3: 495
[10] Cap. IX Rom, em Opera, p. 791-792; Works 3: 505-506
[11] Cap. IX Rom, em Opera, p. 787; Works 3: 499
[12] Cap. IX Rom, em Opera, p. 787; Works 3: 500
[13] Este é um exemplo de como a vontade antecedente de Deus pode ser resistida, mas sua vontade consequente não pode. Em adição, este é um prenúncio do tema da predestinação corporativa que permanecerá importante nas últimas formulações de Arminius da doutrina.
[14] Cap. IX Rom, em Opera, p. 788; Works 3: 501.
[2] Cap. IX Rom, em Opera, p. 778; Works 3: 485-486
[3] Cap. IX Rom, em Opera, p. 778; Works 3: 486
[4] Cap. IX Rom, em Opera, p. 779; Works 3: 486-487
[5] Cap. IX Rom, em Opera, p. 780; Works 3: 488
[6] Cap. IX Rom, em Opera, p. 780; Works 3: 488
[7] Cap. IX Rom, em Opera, p. 781; Works 3: 490
[8] Cap. IX Rom, em Opera, p. 780-785; Works 3: 489-495
[9] Cap. IX Rom, em Opera, p. 784; Works 3: 495
[10] Cap. IX Rom, em Opera, p. 791-792; Works 3: 505-506
[11] Cap. IX Rom, em Opera, p. 787; Works 3: 499
[12] Cap. IX Rom, em Opera, p. 787; Works 3: 500
[13] Este é um exemplo de como a vontade antecedente de Deus pode ser resistida, mas sua vontade consequente não pode. Em adição, este é um prenúncio do tema da predestinação corporativa que permanecerá importante nas últimas formulações de Arminius da doutrina.
[14] Cap. IX Rom, em Opera, p. 788; Works 3: 501.
Fonte: Deus Amou o Mundo
Um comentário:
Pastor Arthur sempre acertivo em seus posts. Parabéns meu amado pastor. Sempre leio seus posts e medito bastante em tudo o que leio.
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